Aparecido Raimundo de Souza
ELLEN TEM UM SORRISO VEROSSÍMIL que me encanta mais que qualquer joia preciosa de altíssimo valor.
Quando estou a seu lado, traço caminhos incógnitos, dentro de sendas que ainda
não foram percorridas. Embora velho na idade, com o acúmulo de décadas sobre os
costados, me hipnotizo diante de pequenas coisas corriqueiras, e volto a ser
menino embalado na energia das suas primaveras. Às vezes, me assemelho a folhas
soltas ao vento, espalhadas como meses de um ano anfigúrico e assombrado.
Apesar desse incidente, o destino cansado dos meus janeiros passados, se
endireitou e se aprumou. Criou vida nova dentro das picadas que percorremos
mundo afora. Belezas insuspeitáveis desfraldaram formas eloquentes e afloraram,
espavoridas, rugindo como feras circunspectas me fazendo esquecer a fadiga dos
dias tristes e enfadonhos, me desmemoriando completamente dos momentos lúgubres
e consternados e à espera de um milagre que parecia impossível. Um insólito que
não se fez esperar e se iniciou prodigioso quando ela nem pensava em ser
concebida na barriga da mãe.
A vozinha dela... Só o sussurro da sua fala chegando suave em meus
ouvidos se faz bastante para me inebriar, dando a impressão de perceber, ao
longe, uma espécie de cantar melodioso como um viveiro de pássaros. Me lembro como se fosse hoje... Num dado
instante tresloucando plenitudes, ela nasceu. Coroou choramingando e se faz
milagre e se expandiu como partículas desprendidas de brechas taciturnas. Com o
passar do tempo, abriu novos desvãos, fazendo surgir, magnânimos, entre receios
e mistérios, uma nova e cálida esperança, esperança até então destituída de
brilho e cor.
Nesse carrossel girando em meio a um parque das emoções, mais de uma
década se consumiu. A minha princesa, num cotidiano que se renovou a cada
minuto, seguiu faceira, ilustrando, com
a sua meiguice, o quadro do meu agora, fazendo, ao deslizar meticuloso de sua
mão sobre o mágico pincel, que a paisagem entojada do meu porvir fosse mais
sutil, elegante e meticulosamente sonhadora. Talvez até mais branda... Como
chuva benfazeja lavando e iludindo meu cansaço de pés descalços e claudicantes,
ela quem sabe mais à frente, mais à depois, me arranje, junto às benignidades
do Eterno, a chave-chance, para que o meu anfêmero, por aqui, seja mais gostoso
de ser vivido.
Doze anos atrás, Ellen chegou arrebentando fadigas e rabugices. Preencheu
espaços vagos dentro da solidão que me sufocava o direito de ser feliz. Num
passe de suntuosa galhardia, coagulou as minhas dores, solidificou as
angústias, sarou meus machucados abertos e renovou, com forte dose de
adrenalina a alma esporeada, ao tempo em que tendenciou o meu agora-hoje
envolto em grossas camadas de tristezas e dissabores, num grandiloquente estado
novo, como se eu tivesse renascido, inteiro e intocável, noutra encarnação
espiritual.
A danadinha não parou por aí. Viajou mais longe. Soube agitar com gestos
imperceptíveis as minhas particularidades. Desbancou as dependências carentes
que me acorrentavam. Modificou, num piscar de gestos ternos, meus domínios e
habitações, colocando, em lugar (do que até então se fazia negrura, treva e
sombra), uma luminosidade resplandecente, contagiosa, imensurável e perene. De
súbito, meu corpo compungidamente escravizado e prisioneiro, se safou do
recluso em que se achava encarcerado.
Um ser forte e remoçado dentro de mim se avivou, se agigantou e se
desprendeu, sobretudo se desagarrou da subjugação, do amarrado, do tolhido de
movimentos. Em razão disso, de
inopinado, como bomba de pavio aceso, explodi.
Revivi, renasci, me reformei dos pés à cabeça, investido nas brasas
incandescentes dessas horas pungentes que se multiplicaram dentro do
comprazimento que passou a fluir intermitentemente no interior de minha pequena
e agora-imensa alma e, de roldão, se
abriu e se alargou em clima de festa.
Na mesma agulha da bússola do tempo, a aura dos meus percalços, até então
obscurecida e adoentada por uma insatisfação esquisita, igualmente se livrou do
horror, e reacendeu como estrela de primeira grandeza no absoluto do meu olhar.
Deixei de ser um palhaço obumbrado com o incêndio do circo, um qualquer, sem
eira nem beira, peso morto e cativado, pomo das desavenças que eu mesmo criei
em meu próprio derredor chumbado aos grilhões de uma espécie rara de filariose
galopante. Estou, pois, graças a ela, vivendo num gozar de sopros livres.
Abandonei, num desvio insulado, as elucubrações desnecessárias que me
apoquentavam os sentidos.
Mudei o curso dos meus horizontes. Ellen me fez liberto. Deixei de ser
pedra atada a cânhamo no pescoço das minhas imbecilidades. Percebi, a tempo,
que não valia a pena morrer num mar revolto em solidariedade a um afogado
intransigente. Eu precisava seguir em frente, viver. Viver por mim, por ela.
Viver intensamente. Afinal de contas, a minha mocinha se tornou meu objetivo
maior, a parcela viril das minhas alacridades, meu respirar de alento, meu
resistir fervoroso, enfim, meu minuto imperceptível. Ellen versejou a
solmização do meu novo canto de paz, e nesse momento ocupa o lugar-mór do meu
irrepetível nesse corre-corre que às vezes ainda tenta me tirar do sério.
Tem essa linda e encantada garotinha, o dom, o condão mavioso de
multiplicar meus pensamentos acima da gravidade de qualquer instante que pense
em me fazer desanimar. Por ela, agora e sempre, viajarei dentro de meus
devaneios a mil por hora. Transpassarei abismos verticais sem limites, ao
derradeiro em que sentirei, no coração, o desejar irrequieto e palpitante da
minha felicidade se agitando, fremente, frenética, excitada, ebulitiva,
tempestuosa e arteira, como bandeira ao sabor do conflagrado. Ellen, doze anos
atrás, germinou de Érica, a minha primeira filha e, além de um pedacinho do meu
delicioso presente de Deus, se fez neta também e mais que isso, virou filha e
neta. Neta e filha.
Se faz, se fez, mais que a soma de duas. Se tornou múltipla, tátil,
palpável dentro do meu espírito de avô coruja, de pai bobão, avô babão,
adulador, derretido, que voltou a ser criança grande diante da sua irrequietabilidade
moleca. Ellen é proprietária de visões que cingem o mundo. É dona de sorrisos
que fazem renascer o amor a cada tocar de pele na sua melhor forma de
expressão. Essa pétala de flor rara e maviosa, vai um pouco além do impossível:
generosamente benevolente, a minha Ellen enfeita meus dias pósteros.
Tornou mais coeso esse segredo lacrado às minhas horas. Aqueceu como se o
astro rei lá do divorciado firmamento decorasse, cá embaixo, um novo céu à
minha imaginação de avô. Nesse fundir de fortes emoções, eu pai, avô, avô,
pai... Posterguei e ainda agora, adio, abjuro, denego. Me perco sem saber como
não ser Feliz e Realizado. De fato, sou realizado e feliz. Na verdade, embora
prosperamente entrelaçado e irmanado a um Ser Superior que me vigia dia e noite,
confesso, NUNCA PODEREI SER EU, COMPLETAMENTE, SEM ESSE AMOR EM MIM...
Título e Texto: Aparecido
Raimundo de Souza, de
Brasília, Distrito Federal. 17-3-2020
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