terça-feira, 17 de março de 2020

[Aparecido rasga o verbo] Infinita às latitudes

Aparecido Raimundo de Souza

Para Ellen, uma dúzia de velinhas essa noite...

ELLEN TEM UM SORRISO VEROSSÍMIL que me encanta mais que qualquer joia preciosa de altíssimo valor. Quando estou a seu lado, traço caminhos incógnitos, dentro de sendas que ainda não foram percorridas. Embora velho na idade, com o acúmulo de décadas sobre os costados, me hipnotizo diante de pequenas coisas corriqueiras, e volto a ser menino embalado na energia das suas primaveras. Às vezes, me assemelho a folhas soltas ao vento, espalhadas como meses de um ano anfigúrico e assombrado.

Apesar desse incidente, o destino cansado dos meus janeiros passados, se endireitou e se aprumou. Criou vida nova dentro das picadas que percorremos mundo afora. Belezas insuspeitáveis desfraldaram formas eloquentes e afloraram, espavoridas, rugindo como feras circunspectas me fazendo esquecer a fadiga dos dias tristes e enfadonhos, me desmemoriando completamente dos momentos lúgubres e consternados e à espera de um milagre que parecia impossível. Um insólito que não se fez esperar e se iniciou prodigioso quando ela nem pensava em ser concebida na barriga da mãe. 

A vozinha dela... Só o sussurro da sua fala chegando suave em meus ouvidos se faz bastante para me inebriar, dando a impressão de perceber, ao longe, uma espécie de cantar melodioso como um viveiro de pássaros.  Me lembro como se fosse hoje... Num dado instante tresloucando plenitudes, ela nasceu. Coroou choramingando e se faz milagre e se expandiu como partículas desprendidas de brechas taciturnas. Com o passar do tempo, abriu novos desvãos, fazendo surgir, magnânimos, entre receios e mistérios, uma nova e cálida esperança, esperança até então destituída de brilho e cor. 

Nesse carrossel girando em meio a um parque das emoções, mais de uma década se consumiu. A minha princesa, num cotidiano que se renovou a cada minuto,  seguiu faceira, ilustrando, com a sua meiguice, o quadro do meu agora, fazendo, ao deslizar meticuloso de sua mão sobre o mágico pincel, que a paisagem entojada do meu porvir fosse mais sutil, elegante e meticulosamente sonhadora. Talvez até mais branda... Como chuva benfazeja lavando e iludindo meu cansaço de pés descalços e claudicantes, ela quem sabe mais à frente, mais à depois, me arranje, junto às benignidades do Eterno, a chave-chance, para que o meu anfêmero, por aqui, seja mais gostoso de ser vivido.

Doze anos atrás, Ellen chegou arrebentando fadigas e rabugices. Preencheu espaços vagos dentro da solidão que me sufocava o direito de ser feliz. Num passe de suntuosa galhardia, coagulou as minhas dores, solidificou as angústias, sarou meus machucados abertos e renovou, com forte dose de adrenalina a alma esporeada, ao tempo em que tendenciou o meu agora-hoje envolto em grossas camadas de tristezas e dissabores, num grandiloquente estado novo, como se eu tivesse renascido, inteiro e intocável, noutra encarnação espiritual.

A danadinha não parou por aí. Viajou mais longe. Soube agitar com gestos imperceptíveis as minhas particularidades. Desbancou as dependências carentes que me acorrentavam. Modificou, num piscar de gestos ternos, meus domínios e habitações, colocando, em lugar (do que até então se fazia negrura, treva e sombra), uma luminosidade resplandecente, contagiosa, imensurável e perene. De súbito, meu corpo compungidamente escravizado e prisioneiro, se safou do recluso em que se achava encarcerado.

Um ser forte e remoçado dentro de mim se avivou, se agigantou e se desprendeu, sobretudo se desagarrou da subjugação, do amarrado, do tolhido de movimentos.  Em razão disso, de inopinado, como bomba de pavio aceso, explodi.  Revivi, renasci, me reformei dos pés à cabeça, investido nas brasas incandescentes dessas horas pungentes que se multiplicaram dentro do comprazimento que passou a fluir intermitentemente no interior de minha pequena e agora-imensa alma e,  de roldão,  se  abriu e se alargou em clima de festa.

Na mesma agulha da bússola do tempo, a aura dos meus percalços, até então obscurecida e adoentada por uma insatisfação esquisita, igualmente se livrou do horror, e reacendeu como estrela de primeira grandeza no absoluto do meu olhar. Deixei de ser um palhaço obumbrado com o incêndio do circo, um qualquer, sem eira nem beira, peso morto e cativado, pomo das desavenças que eu mesmo criei em meu próprio derredor chumbado aos grilhões de uma espécie rara de filariose galopante. Estou, pois, graças a ela, vivendo num gozar de sopros livres. Abandonei, num desvio insulado, as elucubrações desnecessárias que me apoquentavam os sentidos. 

Mudei o curso dos meus horizontes. Ellen me fez liberto. Deixei de ser pedra atada a cânhamo no pescoço das minhas imbecilidades. Percebi, a tempo, que não valia a pena morrer num mar revolto em solidariedade a um afogado intransigente. Eu precisava seguir em frente, viver. Viver por mim, por ela. Viver intensamente. Afinal de contas, a minha mocinha se tornou meu objetivo maior, a parcela viril das minhas alacridades, meu respirar de alento, meu resistir fervoroso, enfim, meu minuto imperceptível. Ellen versejou a solmização do meu novo canto de paz, e nesse momento ocupa o lugar-mór do meu irrepetível nesse corre-corre que às vezes ainda tenta me tirar do sério.

Tem essa linda e encantada garotinha, o dom, o condão mavioso de multiplicar meus pensamentos acima da gravidade de qualquer instante que pense em me fazer desanimar. Por ela, agora e sempre, viajarei dentro de meus devaneios a mil por hora. Transpassarei abismos verticais sem limites, ao derradeiro em que sentirei, no coração, o desejar irrequieto e palpitante da minha felicidade se agitando, fremente, frenética, excitada, ebulitiva, tempestuosa e arteira, como bandeira ao sabor do conflagrado. Ellen, doze anos atrás, germinou de Érica, a minha primeira filha e, além de um pedacinho do meu delicioso presente de Deus, se fez neta também e mais que isso, virou filha e neta. Neta e filha.

Se faz, se fez, mais que a soma de duas. Se tornou múltipla, tátil, palpável dentro do meu espírito de avô coruja, de pai bobão, avô babão, adulador, derretido, que voltou a ser criança grande diante da sua irrequietabilidade moleca. Ellen é proprietária de visões que cingem o mundo. É dona de sorrisos que fazem renascer o amor a cada tocar de pele na sua melhor forma de expressão. Essa pétala de flor rara e maviosa, vai um pouco além do impossível: generosamente benevolente, a minha Ellen enfeita meus dias pósteros.

Tornou mais coeso esse segredo lacrado às minhas horas. Aqueceu como se o astro rei lá do divorciado firmamento decorasse, cá embaixo, um novo céu à minha imaginação de avô. Nesse fundir de fortes emoções, eu pai, avô, avô, pai... Posterguei e ainda agora, adio, abjuro, denego. Me perco sem saber como não ser Feliz e Realizado. De fato, sou realizado e feliz. Na verdade, embora prosperamente entrelaçado e irmanado a um Ser Superior que me vigia dia e noite, confesso, NUNCA PODEREI SER EU, COMPLETAMENTE, SEM ESSE AMOR EM MIM...
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Brasília, Distrito Federal. 17-3-2020

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