domingo, 26 de julho de 2020

Crônica anunciada dos próximos meses

Salazar e salazaristas em cada esquina. A direita que se tornou oposição de si mesma reduzida à contabilidade dos votos que o Chega pode conseguir. E Marcelo a dizer coisas

Helena Matos

Salazar e salazaristas em cada esquina. 

Meio século depois de ter morrido, Salazar vai estar mais vivo do que nunca. O regime precisa da ficção de um perigo salazarista pois o anti-salazarismo tornou-se a definição possível para o que somos e que não é bem aquilo que imaginamos vir a ser. Sem outro projeto que não seja o viver à conta alheia, as esquerdas ressuscitam o passado para que não nos interroguemos sobre o presente.

Felizmente para si mesmo (e para nós) Salazar teve o bom senso (e também o imenso orgulho dos que optam por se manter pobres) de se fazer enterrar numa campa rasa no cemitério da sua terra, caso contrário acabaria exumado como Franco que, ironia das ironias, teve Sánchez e Iglesias a garantirem-lhe um funeral transmitido em direto pela televisão pública espanhola (a mesma televisão que meses depois fez uma cobertura rudimentar da missa em memória das vítimas do Covid.)

A direita que se tornou oposição de si mesma vai andar entretida a fazer contas de somar e diminuir em torno dos votos que o Chega pode conseguir. 

A direita que se tornou oposição de si mesma é a herdeira daquela que em 2015 defendia a tese da vacina: não valia a pena a luta ideológica – garantiam – bastava que a esquerda governasse, mais a mais governando com a extrema-esquerda como era o caso, e as pessoas logo perceberiam a superioridade das outras opções. Ficavam vacinados!

Foi quase com exasperação que esta boa gente viveu a tomada de posse do governo de Passos Coelho, a 30 de outubro de 2015. E não apenas porque muitos deles não gostavam de Passos Coelho, mas sobretudo porque os incomodava aquele exercício de poder, aquela afirmação de legitimidade. Para mais, a esquerda não escondia a impaciência e fulanizava a sua ira na figura de Cavaco Silva: o deputado socialista Tiago Barbosa Ribeiro chamava-lhe gangster. O então candidato presidencial do PCP, Edgar Silva, optava pelo termo múmia: “Há uma múmia em Belém que não tem coração para atender o povo”. Já Catarina Martins preferia a expressão “líder de seita”. Para quê irritar esta gente?

Entre aquilo que se designa como sociedade civil havia quase que um incómodo com o que lhes parecia ser uma obstinação do então PR. Como explicava o presidente da Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva, o Presidente da República pode “prejudicar o ambiente político-partidário” e o “quadro de diálogo de estabilidade”. (São assim muitos empresários portugueses: gostam de quem mande e de ganhar sem arriscar e por isso muito acertadamente preferem os governos socialistas).

A 10 de Novembro, o governo de Passos Coelho caía no parlamento. Dezessete dias depois António Costa tornava-se primeiro-ministro: “E o palácio encheu-se de gente normal” – titulava o Público numa reportagem que simboliza o início do estado de exaltação colaborante do progressismo mediático nacional com o governo de António Costa. A 11 de Novembro a direita das vacinas deve ter começado a perceber que não ia passar a ser amada simplesmente por ter sido arredada do poder. Mas logo se agarrou a outro mantra: nunca era o momento adequado para se fazer oposição. Em 2020, essa estratégia revelou-se na magnitude dos seus resultados: a principal preocupação de quem lidera o PSD deixou de ser fazer oposição ao PS, mas sim contar os votos que o Chega pode ter. O caso seria anedótico não fosse o tacticismo fútil de Marcelo e o autismo de Rui Rio terem destruído o centro direita como o havíamos conhecido.

Quanto às vacinas comprovadamente em política elas não funcionam: aqui estamos cinco anos depois, aceitando o que antes nos indignava; normalizando o que era escândalo… A única preocupação é saber se os holandeses deixam vir o dinheiro. E claro, os votos que o Ventura vai ter.

Marcelo diz.

Aqueles que nas sondagens dizem aprovar Marcelo vão sair de casa para votar nele? A esta pergunta Marcelo procura responder falando, falando e falando. Todos os dias Marcelo diz qualquer coisa. Só neste mês de Julho tivemos afirmações tão atolambadas quanto “O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, disse que a solução encontrada para a TAP foi apenas a que sobrou, entre as restantes” ou “Marcelo diz que Portugal já apoiou Reino Unido no passado “(…) Quando se está em baixo precisa-se dos outros. Quando se está no alto – ou quando se pensa que se está no alto – às vezes esquecem-se os outros“.   Marcelo diz uma coisa e o seu contrário sobre todo e qualquer assunto, as mais das vezes sem saber o que está dizer: “Marcelo diz que medidas de combate à Covid-19 têm de ser agora específicas e “de pormenor” ou Marcelo diz que parecer que arrasa plano de investimentos “ésobre o passado … Há mais dizeres de Marcelo neste mês mas há limites para a minha capacidade de transcrição! Marcelo acredita que se disser constantemente algo, os eleitores vão depositar o voto com a cruz no seu nome, tal como os telespectadores carregavam na tecla do comando da televisão que correspondia ao canal em que ele surgia. Creio que há a forte possibilidade de não ser assim porque não existem eleitores de sofá nem de selfie: para votar há que fazer um esforço. E quem está disposto a esforçar-se por Marcelo?

PS. Vamos lá ver se nos entendemos: em Marrocos, candidatos a migrantes pagam a passadores e estes fazem-nos desembarcar no Algarve. Mas não existe uma rota de migração segundo o Governo. Sim, uma rota de migração é precisamente o que acontece no Algarve: candidatos a migrantes pagam a passadores e estes fazem-nos desembarcar num determinado ponto após fazerem um determinado trajeto. Mas não estamos perante uma rota de migração: o ministro da Administração Interna até acha ridículo dizer-se tal coisa.  Ou seja, é uma rota de migração, mas não se pode dizer que é uma rota de migração.

Título e Texto: Helena Matos, Observador, 26-7-2020, 8h44

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