quinta-feira, 22 de abril de 2010

Contos moucos dos loucos (II)


O melhor natal
Afonso tinha nove anos, vivia no musseque de Sambinzanga, em Luanda. Não sabia o que era Natal. Quer dizer, lembrava-se que nessa 'data' a sua mãe e o seu pai traziam dos seus empregos umas coisas diferentes gostosas de comer. Às vezes, traziam também um ou dois brinquedos. Era isso o Natal para ele.
Naquele 'natal', estava ele brincando na terra vermelha varrida em frente à sua cubata quando o viu... Um homem alto, fortão, com uma boina azul na cabeça: a boina do 7º Regimento dos Caçadores Paraquedistas de Angola.
O paraquedista sorriu-lhe e cumprimentou-o com um amigável e sonoro 'botarde'. Afonso respondeu siderado.
...
Hoje, Afonso das Neves, tenente-coronel do 1º Regimento dos Caçadores Paraquedistas de Angola, repete para os seus netinhos a história do melhor natal da vida dele...


O recado
A noite de Natal sempre fora para ele uma noite especial, não por motivos religiosos, é verdade, mas pela reunião da família, (e alguns amigos em tempos idos) da boa comida e bebida, das brincadeiras e do riso, enfim, pela saudável e alegre farra. E também pela troca de presentes, dois ou quinze, tanto faz.
Mas nesta noite ele estava sozinho. Não estava triste, nem maldizendo a sorte. Estava só. Havia comido uma parte da ave encomendada e bebera uma garrafa de vinho tinto.
Sentado na varanda, olhava para a vista horizontal, para o interior do seu apartamento e para o céu. Foi nesse instante que se deu conta do furto; da sua paz, da sua alegria, da sua tranqüilidade, da sua espontaneidade...
Antes da lágrima, percebeu numa das estrelas o recado: tinha que aprender a falar e andar, de novo!


O segredo de Antonio
Antonio trabalhou na Panair. Alda trabalhou na Braniff. Um trabalhou em terra, o outro, no ar. Um sofreu em 1965, o outro em 1982.
Estavam casados há vários anos. Moravam numa ampla casa com um grande quintal, na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro.
Antonio gostava muito de mexer na terra e com terra. Entretia-se durante boa parte do dia no quintal. Na outra parte brincava e interagia no orkut. 
Alda, com os seus afazeres domésticos e pessoais - cursava a faculdade de Direito e praticava lançamento de martelo -, elogiava o quintal bem cuidado e ajardinado.
Uma tarde, Alda, que nesse dia não tivera aula e não fora praticar lançamento de martelo, resolveu, então, passear pelo jardim. E viu. Encostada a um canto, uma não pequena caixa de metal, cheia de terra e minhocas...
Alda, super intrigada, perguntou-se: - Mas que raios ele vai fazer com estas minhocas?...

 Antonio lera há muito tempo que as minhocas se alimentavam dos corpos enterrados e encovados. Pois então resolvera criar e domesticar minhocas. Elas iriam com ele para o túmulo. Sobreviveriam, claro. Mas o comeriam com organização e disciplina.

Nunca neste país...
Filho da Puta, era saltitante, como a grande maioria de seus pares. Polyanna, a égua, não era menos. Pertenceram a José De Iceu que havia batizado o seu cavalo com o nome daquele outro, o original inglês. O chefe de José De Iceu, Luiz Sem Dedo, que havia sido eleito para chefiar a Vila Mimosa, encantou-se com o Filho da Puta. Muito solícito, calculista e puxa-saco, José De Iceu ofereceu a parelha ao seu chefe.
Foi aí que os animais começaram a comer pirulitos. E toma-lhe de pirulitos dados pela outra cavalgadura, a bípede, que não sabia do mal que os pirulitos causam às dentaduras dos cavalos.
Agora, já se vão alguns anitos, Filho da Puta e Polyanna já não saltitam mais e são os únicos cavalos neste país que, sem dentes, não se lhes pode saber a idade...


Vodu haitiano
Encontraram-se na igreja. Ela ainda não o conhecia, pessoalmente. Assistiram à missa. Preencheram procurações. Beijaram-se, nas faces. Ela quis tirar uma foto ao lado dele. Ele acedeu.
Hoje, essa foto jaz na parede da cozinha cravada por alfinetes. 

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