quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

A sopa da minha avó

Maria José Nogueira Pinto
Nas antigas casas grandes havia uma divisão sem uso específico, a que se chamava a "casa do vago". Não raras vezes essa divisão acabava por ser central na vida da casa e dos seus moradores. Na nossa era a "entrada", com a grande mesa, as cadeiras e os bancos corridos junto às paredes, o chão de tijoleira muito gasta e o rodapé de azulejos.
Ultimamente, a lembrança da minha avó vem-me constantemente à cabeça. Dela e da sua sopa, que à época se designava por sopa dos pobres. Todos os dias, ao bater do meio-dia, ela e a Ermelinda cozinheira traziam grandes panelões fumegantes e cestos com pão que colocavam sobre a mesa da "casa do vago" e alimentavam três dezenas de homens e mulheres com fome.

A minha avó tinha um conceito preciso de servir e de serviço, na confecção das refeições, no encher do prato, nas palavras que trocava com cada um como se ele fosse o único, no cuidado de separar as loiças e talheres dos tuberculosos sem que eles se apercebessem. Com a chegada de Marcelo Caetano ao poder e a criação de uma série de benefícios sociais, a sopa da minha avó foi ficando deserta. Doravante, pensámos que o Estado e os sistemas sociais assumiriam o cuidar de todas as formas de pobreza e, no post-25 de Abril, os gestos de boa vontade da minha avó e de tantas outras pessoas foram mesmo considerados como uma "caridadezinha" de mau gosto.

Uma ilusão. Quando já acreditávamos que só era preciso dar a cana e ensinar a pescar, uma crise económica e financeira pôs em evidência as fundas raízes da pobreza, a precariedade dos pobres, das suas vidas e dos seus destinos. Afinal, em Portugal e na Europa - com os seus mais de oitenta milhões de pobres - volta a ser necessário organizar, de modo sistemático, a Obra de Misericórdia mais primária de dar de comer a quem tem fome. Aos mais marginais como os sem-abrigo que nunca abandonaram a "Sopa" dos Anjos junta-se, agora, uma crescente multidão de pessoas vítimas da pobreza envergonhada: famílias, velhos, desempregados, crianças que chegam à escola com fome.
Se bem que, em Portugal, milhares de organizações da economia social e à cabeça as que emanam da Igreja Católica, nunca tenham baixado os braços neste combate desigual contra a pobreza o certo é que a realidade recente espicaçou a nossa consciência colectiva. A petição sobre o combate ao desperdício, a possibilidade de poder, por fim, distribuir as sobras da restauração, do comércio alimentar, as refeições não consumidas nos voos da TAP bem como a mudança de atitude da ASAE significam uma alteração profunda na mentalidade instalada nos últimos tempos e assente no paradigma do excesso de consumo, da desvalorização do desperdício e do alheamento dos outros, daqueles que são quase inaudíveis e invisíveis, os que não consomem, não desperdiçam e nem sequer comem.
É certo que tudo isto tem que nos envergonhar. Significa o fracasso do discurso social europeu e português, a ineficiência das políticas públicas, o mal gastar dos recursos, as derrotas acumuladas e uma guerra perdida. Mas entre a nossa vergonha e a fome dos outros, dar de comer é a prioridade e fazê-lo à custa do desperdício, o caminho mais expedito.
Em vésperas de Natal, neste ano de 2010, penso na minha avó e na justeza de tudo o que dizia e fazia. E nos "bodos" natalícios que compunha com as suas mãos, juntando num cabaz azeite, bacalhau, arroz, massa, feijão, açúcar e broas, para cada família cujas necessidades ela conhecia porque criara com todas e cada uma essa proximidade evangélica que não tem a ver com dar mas sim com partilhar, que não tem a ver com pena mas sim com compaixão. E penso em tantos que, agora de novo, vêm chegar esta data num estado de privação e de aflição. E de como a verdadeira mensagem do Natal se reforça na consciência do seu sofrimento e humilhação, despojando esta quadra de tanta inutilidade, abrindo espaço ao admirável Mistério da Encarnação e ao mandamento novo do amor fraterno e exigente.
Maria José Nogueira Pinto, Diário de Notícias, 23-12-2010

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