segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Europa descalça

Quando, em Maio, a Grécia foi resgatada por um pacote de ajuda conjunto da zona euro e do Fundo Monetário Internacional (FMI), era óbvio que isso constituía apenas um alívio temporário.

Agora, está completamente descalça. Com os problemas da Irlanda a ameaçarem estender-se a Portugal, Espanha e, até, à Itália, está na altura de se repensar a viabilidade da união monetária da Europa.
Isto não é fácil de dizer, já que eu não sou um eurocéptico. Ao contrário de outras pessoas - como, por exemplo, o meu colega de Harvard Martin Feldstein, que defende que a Europa não é uma zona monetária natural -, eu acredito que a união monetária fez todo o sentido no contexto de um projecto europeu mais alargado que salientava - como ainda o faz - a construção de instituições políticas a par da integração económica.
O azar da Europa foi ter sido atingida pela pior crise financeira desde os anos 1930 enquanto estava ainda a meio caminho do seu processo de integração. A zona euro estava demasiado integrada para que efeitos transfronteiriços não causassem mossa nas economias nacionais, mas não suficientemente integrada para ter a necessária capacidade institucional para gerir a crise.

Vejam o que acontece quando os bancos no Texas, na Florida, ou na Califórnia tomam más decisões relativamente a empréstimos que ameaçam a sua sobrevivência. Se a questão for mera falta de liquidez, a Reserva Federal em Washington está pronta a agir como mutuante de último recurso. Se forem considerados insolventes, é-lhes permitido abrir falência ou a ser controlados pelas autoridades federais, e os depositantes são ressarcidos pela Federal Deposit Insurance Corporation.
Do mesmo modo, em caso de falência, as leis e os tribunais federais norte-americanos julgam prontamente processos entre os credores, e fazem-no sem olhar a fronteiras estatais. Independentemente do resultado, a dívida privada não é socializada pelos governos estatais (mas se de alguma forma o for, é-o pelo Governo federal), e não ameaça as finanças públicas ao nível dos estados.
Por sua vez, os governos estatais não possuem poder legal para revogar contratos de dívida relativamente a credores de outro estado, nem possuem qualquer incentivo para o fazer (dada a ajuda que têm por parte do Governo federal). Portanto, mesmo em plena angústia de uma crise financeira, bancos e empresas não financeiras podem continuar a contrair empréstimos se os seus balanços forem saudáveis e não estiverem contaminados pelo "risco soberano" do governo do seu estado.
Entretanto, o Governo federal recupera uma boa fatia da queda de receitas estatais através de transferências ou de impostos reduzidos. Os trabalhadores que mesmo assim continuem em dificuldades podem facilmente deslocar-se para estados onde a situação seja melhor sem preocupações de diferença de língua ou de choque cultural. Quase tudo isto se passa de forma automática, sem negociações longas e conflituosas entre os governadores dos estados e os responsáveis federais, sem ajuda do FMI, e sem pôr em causa a existência dos Estados Unidos como entidade política e económica unificada.
Portanto, o verdadeiro problema da Europa não é que a Espanha ou a Irlanda tenham contraído grandes empréstimos, nem que uma parte demasiado grande da dívida espanhola ou da dívida irlandesa faça parte dos balanços dos bancos noutras partes da Europa. Afinal, quem é que se preocupa com o défice da conta corrente da Florida - ou sequer quer saber a quanto monta? Não, o verdadeiro problema está em que a Europa não criou as instituições a nível da União que um mercado financeiro integrado exige.
Isto reflecte a ausência de instituições "políticas" adequadas no centro. A União Europeia deu-nos, nas últimas décadas, valiosíssimas lições: primeiro, que a integração financeira requer a eliminação da volatilidade entre as moedas nacionais; depois, que acabar com o risco das taxas de câmbio exige que se acabe com as moedas nacionais no geral; e agora que, entre democracias, a união monetária é impossível sem união política.
Já era de esperar que o lado político da equação demorasse o seu tempo a correr sem problemas. É fácil acusar os políticos europeus de falta de liderança. Mas não subestimemos a magnitude da tarefa que os governos europeus assumiram.
De facto, o mais parecido com isto é a própria experiência histórica da América de construção de uma república federal. Como mostra a longa luta americana pelos "direitos dos estados" - e, na verdade, a Guerra Civil - criar uma união política de um conjunto de entidades com governos autónomos é um processo lento e difícil.
É natural os estados prezarem a sua soberania. Pior ainda, a própria união económica pode atiçar o nacionalismo e fazer perigar a integração política. Cria tensões nas instituições de cada país (manifestas na pressão sobre os estados-providência da Europa), ressentimentos contra estrangeiros (veja-se o recente sucesso dos partidos anti-imigração), e torna as crises financeiras vindas de fora mais prováveis e mais dispendiosas (como nos prova, claramente, a situação actual).
Infelizmente, pode ser já demasiado tarde para a zona euro. A Irlanda e os países do Sul da Europa têm de reduzir a dívida e melhorar muito significativamente a competitividade das suas economias. É difícil imaginar como poderão alcançar estas duas metas enquanto permanecerem na zona euro.
Os resgates da Grécia e da Irlanda não passam de paliativos temporários: nada fazem para reduzir o endividamento, e não detiveram o contágio. Além disso, a austeridade fiscal que prescrevem atrasa a recuperação económica. A ideia de que reformas estruturais e dos mercados laborais podem produzir rápido crescimento não passa de uma miragem. A necessidade de reestruturação da dívida é uma realidade inevitável.
Mesmo que os alemães e outros credores anuam em reestruturar - não a partir de 2013, como pediu a chanceler alemã Angela Merkel, mas "já" -, subsiste ainda o problema de readquirir a competitividade. Este é um problema partilhado por todos os países com défices, mas na Europa do Sul é mais agudo. Pertencer à mesma zona monetária que a Alemanha vai condenar estes países a anos de deflação, elevado desemprego, e a agitação política nacional. Sair da zona euro poderá ser, no ponto em que as coisas estão, a única opção realista para a recuperação.
Uma ruptura na zona euro pode não a condenar para sempre. Os países poderão voltar a unir-se, e a fazê-lo de forma credível, quando forem satisfeitos os pré-requisitos fiscais, reguladores e políticos. De momento, a zona euro poderá ter atingido o ponto em que um divórcio amigável é melhor opção do que anos de declínio económico e azedume político.
Dani Rodrik, Professor na Universidade de Harvard, in "Público", 26-12-2010

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