
Faço questão de chamar, uma
vez mais, a atenção de vocês para um fato evidente. Tanto o “sim” como o “não”
aos embargos infringentes encontravam respaldo legal. Estava-se diante de uma
daquelas situações em que prevalece a interpretação. Não é raro que isso se dê
nos tribunais. Por isso existem os juízes. Estão aí para fazer o trabalho que
não pode ser executado por jornalistas, contadores, matemáticos, filósofos etc.
Existem para dar realidade e consequência prática ao espírito das leis, atuando
muito especialmente nas zonas intersticiais criadas ou pela ausência da letra
ou pela ambiguidade gerada por letras que, na superfície ao menos, estão em
conflito. Juízes, é certo, podem decidir estupidamente errado e fazer mal às
sociedades, mas nada que se compare a sociedades sem juízes.
Assim, qualquer decisão de
Celso de Mello poderia reivindicar o estatuto de legal. Descarte-se, pois, que
os que se opunham à sua escolha, inclusive dentro do tribunal, estivessem a
advogar uma saída de exceção Muito pelo contrário: se uma coisa e outra se
amparavam em códigos escritos, a mim sempre pareceu — e também a muitos
especialistas — que o “não” estava mais adequado ao espirito da lei. Mas o
ministro escolheu fazer o contrário. O “não” abriria o caminho para que,
finalmente, se pusesse fim a esse processo, que se arrasta no tribunal há seis
anos — oito desde a que o escândalo do mensalão veio à luz. O “sim” de Celso de
Mello, o sexto, coloca o país na vereda da incerteza, que, vejam só!, nos
conduz àquilo que já somos: um país notório por uma Justiça que é falha porque
tardia e tardia porque falha. A insensatez dessa escolha se revela por qualquer
ângulo que se queira, e o da lógica é o mais evidente: quatro votos
divergentes, então, bastam para que um condenado tenha direito a um novo
julgamento, mas cinco são inúteis para impedir que ele se realize? Um oponente
poderia redarguir: “Mas a maioria quis o contrário”. E não foi, por acaso, a
maioria que condenou os réus que agora terão direito a um novo julgamento?
Não é raro que sejamos
confrontados, na vida pessoal e profissional, com situações em que somos
forçados a escolher entre alternativas que não encerram, em si, o ótimo. Os
grandes dilemas éticos, diga-se, sempre estão nessa categoria. A resposta nunca
é óbvia ou insuscetível de dúvidas. Nesse caso, parece-me, cumpre convocar a
moral pessoal para que seja ela a decidir. Entendo que, em situações assim, a
escolha há de recair sobre o mal menor. A despeito de eventuais simpatias e
afinidades por este ou por aquele, é bem possível que, ao celebrar um acordo
com Hitler, em 1938, Chamberlain e Daladier estivessem pensando em evitar a
guerra — decidiram, pois, entre duas alternativas ruins. Mas escolheram o mal
maior, o que não escapou aos olhos argutos de um certo Churchill: “Entre a
desonra e a guerra, escolheram a desonra e terão a guerra”.
Celso de Mello é um juiz, não
uma máquina de recitar dispositivos legais. Estou certo de que pesaram em sua
escolha o ambiente político, a campanha de desmoralização do Supremo que se
seguiria à eventual rejeição dos embargos, as tentativas — que seriam inúteis —
de apelar à Corte Interamericana etc. Assim, entre o trabalho de satanização do
STF e os embargos infringentes, Mello escolheu os infringentes e terá… a
satanização do STF. Ou vocês acham que o PT dará uma trégua aos ministros? Não
há a menor possibilidade de que isso aconteça. Doravante, vai se exigir cada
vez mais da Casa, até porque, como escrevi há tempos, o “mal” já se insinuou,
já fincou bandeira no tribunal. A que “mal” me refiro? A algum ente de outro
mundo? Não! Falo é de duendes deste mundo mesmo. Interesses ideológicos e
escancaradamente político-partidários sentaram praça na mais alta corte do
país.
Mello toma a decisão errada no
momento em que o tribunal sofre um assédio como nunca se viu. A ditadura
aposentou ministros à força, por conta de atos discricionários. O petismo quer
calar todo o tribunal, esteriliza-lo, transformando-o em merca corrente de
transmissão dos interesses partidários. E há vozes lá dentro a dizer
inconveniências incompatíveis com aquele ambiente e com as atribuições do
Judiciário. Ricardo Lewandowski acusa seus pares de atuação deliberada para
prender um dos condenados. Roberto Barroso não tem pejo de fazer um repto em
favor de um outro, nada menos do que presidente do partido à época em que se
deu consequência à velha tentação de tomar de assalto o poder. Dias Toffoli,
ex-subordinado daquele que foi considerado o chefe da quadrilha, não viu por
que se declarar impedido — e, ainda que quisesse, sabe que não teria como
fazê-lo.
O ministro diz “sim” aos
infringentes quando está em curso uma campanha de heroicização dos criminosos e
de criminalização dos ministros do Supremo que ousaram não fazer as vontades
dos poderosos de turno. Planejam-se fazer filmes, com dinheiro público (o mesmo
usado na tentativa de assalto ao Estado), em que os “marginais” do poder
atuarão como cavaleiros impolutos da ética, lutando contra os homens maus do
Supremo, que tiveram o topete de condená-los. Celso de Mello sabe muito bem que
ninguém estava a lhe cobrar que ignorasse a lei. Ao contrário: o que se pedia é
que ela fosse cumprida segundo o caminho virtuoso. O fato é que, infelizmente,
ainda que por intenções virtuosas, ele escolheu o caminho vicioso.
Todo o estrondo que se ouviu
nas ruas em junho, mal interpretado, acho eu, pelos virtuosos e a tempo
manipulado pelos viciosos, transformou-se não mais do que num suspiro nestes
dias em que o STF decidia os rumos do processo do mensalão. As ruas se calaram.
O Sete de Setembro ficou entregue aos vândalos, a fascistoides depredadores da
ordem, a hordas que, ficou claro, odeiam mais a imprensa livre do que os
ladrões do dinheiro público. Não sei se a reversão das expectativas de muita
gente que tem sede de justiça resultará em nova onda de indignação. Não creio.
O mais provável é que, à decisão de Celso se Mello, se siga um clamor
silencioso, frio, passivo, abúlico até. Os que tinham a desconfiança de que, no
fim das contas, como cansei de ouvir, “isso não daria em nada” verão
confirmadas sua expectativa, triste. Como anteviu o mago petista Delúbio
Soares, um dia se falaria desse crime como “piada de salão”, não é mesmo? Acho
que Celso de Mello contribuiu, querendo ou não, para fazer de Delúbio um
visionário.
Agora, qualquer coisa pode
acontecer — e é grande a chance de que não aconteça nada. Um novo julgamento é
um novo julgamento. Ele implica, necessariamente, a mudança de resultado do que
foi definido no primeiro? Não é fatal, mas é o mais provável. Ou vamos esquecer
que Teori Zavascki, com o luxuoso auxílio de Ricardo Lewandowski e Dias
Toffoli, tentou usar os embargos de declaração para rever a pena de José Dirceu
e de outros heróis da pátria? O mínimo que se vai tentar e livrar o chefão
petista e amigos do crime de formação de quadrilha — ou diminuir-lhes
drasticamente a pena. Os quatro que inocentaram Dirceu nesse caso não têm por
que mudar de ideia. A decisão ficará com os dois mais novos ministros da corte.
A decisão errada e imprudente
de um virtuoso torna céticos os decentes e ainda mais cínicos os viciosos. A
Justiça vai a pique pelas mãos de seu mais ilustre e experiente timoneiro.
Finalmente, lastimo a retórica
a que recorreu na introdução de seu voto, em que opôs o direito, sede da morada
da racionalidade, à voz do povo, movido por paixões irracionais. Que um voto
como esse, com essa abordagem, sirva para proteger, na prática, os malfeitores
petistas.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 18-9-2013
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No post anterior, um longo texto sobre o voto de Celso de Mello. Neste, uma observação curta: raramente se viu alguém manejar com tanta destreza a virtude — as garantias do estado de direito — em favor do vício.
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