Jacinto Flecha

Tentaram vários artifícios,
como uma explosão e um toque de corneta bem atrás dele, esperando que ele se
traísse. Mas o espião já contava com isso, não se assustou nem demonstrou ter escutado.
A equipe já dava como comprovada a inocência do suspeito, e o chefe cochichou
com um dos auxiliares:
— Não adianta prosseguir, ele
é de fato surdo-mudo.
Nesse momento, o espião
“surdo” não resistiu ao ímpeto de cantar vitória, e um leve sorriso demonstrou
que tinha bons ouvidos. Essa simples expressão fisionômica comprometedora
bastou para conduzi-lo diretamente à prisão.
Expressões fisionômicas têm
sido bem descritas por bons literatos, mostrando detalhes faciais ou de postura
que indicam retidão de conduta ou desvios morais, classe social, etnia, estados
de espírito e muitas outras características. Há descrições tão atraentes, que o
leitor se sente dentro da cena, como se participasse da ação.
As artes plásticas, quando não
são influenciadas por modernices, conseguem resultados esplêndidos nessa linha.
A Gioconda, por exemplo, é até hoje objeto de estudos minuciosos e hipóteses
diversas sobre o significado do seu sorriso enigmático. Algumas estátuas,
embora tenham traços fisionômicos imutáveis, são esculpidas de modo a darem a
impressão de criaturas vivas, com mudanças de expressão conforme o ângulo em
que são vistas. Não são feitos para isso certos bustos de homenagem a
personalidades, geralmente mostrando os traços básicos ou uma só
característica.
Será que esse trabalho
artístico ou descritivo tem alguma utilidade?
Quando falo de utilidade,
algum leitor pode ser levado a julgar-me mal, por isso devo esclarecer que não
estou falando de dinheiro. Não nego a utilidade do dinheiro, mas estou muito
longe de considerá-lo o único ou o mais importante objetivo da vida. Não fujo
também à tarefa de citar um exemplo em que o conhecimento das variações
fisionômicas é lucrativo. No jogo de pôquer, ou mesmo no truco, certamente se
daria mal o jogador que não consegue perceber no adversário as variações
fisionômicas indicando alegria, desânimo, decepção, susto, blefe. Nesses jogos
é essencial não demonstrar essas reações, daí a expressão inglesa pokerface.
Passando a outra área, lembro
um famoso ator do faroeste, cujas expressões fisionômicas eram muito limitadas.
A ponto de um crítico comentar, com impiedosa mordacidade, que ele só tem duas
caras: com chapéu e sem chapéu. Acho bem injusto o comentário, pois no
bang-bang o que resolve é o Colt, não a cara.
A cirurgia plástica e seus
derivados têm contribuído a seu modo para limitar ou reduzir as expressões
fisionômicas. Puxa aqui, emenda ali, costura de cá e de lá, botox pra todo
lado, e resulta que um sorriso destinado a ser agradável pode se transformar em
careta. Uma gargalhada involuntariamente exagerada pode repuxar tecidos
estrategicamente ajustados, forçando a pessoa plastificada a
bancar uma esfinge; por medida de precaução, como se dissesse: ou me
decifras, ou te devoro.
Alguém poderia objetar que
estou dando importância exagerada às expressões fisionômicas.
Afinal de contas, os
sentimentos podem ser manifestados de muitas outras formas, como cantar,
saltitar, assoviar, oscular. E os animais não têm recursos fisionômicos, mas se
comunicam de outros modos, como os pássaros com seu canto, os sapos quando
coaxam, os cachorros balançando o rabo ao ver o dono. Mas ninguém negará que as
expressões fisionômicas são uma riqueza da espécie humana. Tanto que, se alguém
me oferecesse um rabo em troca da minha possibilidade de sorrir, nem sei quais
alterações fisionômicas meus membros superiores produziriam na cara dele… Note
aí que até reticências podem indicar expressões fisionômicas.
No Facebook e outros inferninhos
do gênero, expressões fisionômicas não são necessárias, pois seus usuários
conversam por escrito (e que escrito!) enquanto olham retratos fixos,
imutáveis, surdo-mudos. Se escreveu algo engraçado, basta acrescentar rsrsrs ou
kkkk, e o outro deve entender que sorriu ou deu uma gargalhada. E os
monstrinhos dos videogames não conseguem mudar aquelas caras imbecilizadas.
Pronto! Chegamos aonde
queríamos.
Você sabia que as crianças
viciadas em jogos eletrônicos e redes sociais perdem a capacidade de identificar
expressões fisionômicas? Não podia ser outro o resultado, pois lidam quase o
dia inteiro com monstros desses jogos e retratos com caras inertes. Monstros de
videogames não mudam a cara, retratos também não. Quem passa grande parte da
vida nesse meio, onde ninguém muda de cara, não chega a saber para que serve
uma cara. Acho até que se deve mudar o nome para Pokerfacebook.
Seria uma barbada jogar pôquer
com gente assim. Imagine também como deve ser irritante, decepcionante,
desinstrutiva a companhia desses zumbis que não distinguem sorriso de careta, e
olham para nossa cara como se estivessem diante de uma lista telefônica. Tenho
sérias dúvidas de que empresários sejam bem servidos, colocando na direção dos
seus negócios gente educada nessa “escola”.
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