Alexandre Homem Cristo
Podemos achar que é cultural e lamentar-nos dos
nossos políticos. Mas não dá para fugir à evidência de que não há incentivos
institucionais para que o debate seja rigoroso
O leitor lembra-se quando António Costa (ajudado
por um batalhão de comentadores) pressionou Cavaco Silva a antecipar eleições,
com o argumento de que, em Outubro de 2015 (pouco antes das presidenciais de
2016), o Presidente da República perderia o poder de dissolução da Assembleia
da República e que, como tal, estaria “diminuído”, “impotente” e “limitado nas
suas competências presidenciais”? Pronto. Afinal, a Constituição impede a dissolução nos primeiros seis meses após eleições legislativas,
pelo que o argumento não é válido.
Este é um exemplo, entre muitos, das asneiras que
se propagam pelo debate público e que são repetidas à exaustão até se tornarem
verdade. Martelam-se os factos até que encaixem. Ou até serem desmentidos – o
que geralmente acontece tarde demais e já com pouca gente a ouvir.
Pergunto: o que acontece aos políticos que falam
do que não sabem ou, como diz Cavaco Silva, que não fazem o trabalho de casa? São descredibilizados?
Não. No geral, não lhes acontece nada. No pior dos casos, são alvo de um
comentário jocoso e passageiro num debate parlamentar que, só mesmo com azar,
alguém estará a seguir pelo Canal Parlamento e levará a sério. Mas, no melhor e
mais comum dos casos, a sua versão errada das coisas impera sobre a realidade
dos factos e é repetida por comentadores e analistas, alterando o rumo do
debate a seu benefício. E, quando assim sucede (e sucede muito), o resultado só
pode ser um debate construído por mitos em vez de factos.
É um caso típico em que o crime compensa. Num
debate público assim, sustentado em mitos, os factos são, no limite,
irrelevantes. Portanto, a pergunta que urge colocar não é tanto por que razão
não estudam os assuntos, mas sim por que razão os políticos haveriam de o
fazer: para quê ter o trabalho se se pode, sem prejuízo, escolher uma versão
mais favorável dos factos, com melhor adequação à mensagem política que se
pretende passar?
O ponto é esse. Podemos achar que é uma questão
cultural e lamentar-nos da (falta de) estatura moral e ética dos nossos
políticos. Mas não dá para fugir à evidência: não há incentivos
institucionais para que o debate seja rigoroso e apoiado em factos.
Os homens não são anjos, pelo que desejar que o
sejam não nos levará a lado nenhum. E, para as coisas funcionarem, nem os
homens precisam de ser anjos: é precisamente sobre esse pressuposto que as
repúblicas liberais foram construídas e é por isso que existem instituições
para enquadrar e fiscalizar a actividade política. Querem políticos melhores e
bem preparados nos debates? Obriguem-nos a ser melhores. Ora, há algo aí que
tem falhado.
Talvez não seja a afirmação mais segura de se
fazer num jornal mas, em grande medida, parece-me que é nos meios de
comunicação que se localiza o problema – porque também a eles compete
escrutinar os políticos e informar os cidadãos que, por falta de tempo ou
incapacidade, não podem aprofundar os seus conhecimentos acerca de todos os assuntos
da sociedade. Isto porque informar não é só reportar o que foi dito. É,
fundamentalmente, fazer fact-checking e prevenir que o ar se torne
irrespirável. Ora, seja porque se perseguem polémicas (que vendem mais), porque
optam por servir como caixa-de-ressonância de comunicados ou porque as
redacções não têm recursos suficientes para esse tipo de análise, isso não tem
sucedido. Ou, pelo menos, não tem sucedido em tempo útil.
Digo isto com o à-vontade de quem diagnostica um
problema que não sabe se é (mas gostava que fosse) resolúvel. Reconheço que não
vejo que a situação esteja pior do que estava há uns anos – sobretudo naqueles
tempos em que só se viam virtudes no caminho ruinoso do PS de Sócrates. Acho,
de resto, que as dores causadas pela crise fizeram com que todos nos
importássemos mais com o que fazem e dizem os políticos, o que melhorou em
muito o seu escrutínio. Mas agora, sem troika e à beira de entrar em ano
eleitoral (com tudo o que isso poderá significar em volume de demagogias),
seria muito bom que o escrutínio funcionasse e os mitos ficassem, tanto quanto
possível, à margem dos factos. Ganhávamos todos.
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