Rui Ramos
A semana passada vimos toda a
oligarquia, da esquerda à direita, colaborar para conter o escândalo da prisão
de um ex-primeiro ministro. Foi a mais brilhante operação política em 40 anos de
democracia
Logo que José Sócrates foi
preso, toda a oligarquia política ficou preocupada com António Costa. As formas
de vida que habitam as profundidades televisivas desmultiplicaram-se
imediatamente em conselhos: acima de tudo, nada de Casas Pias. O guião ficou
escrito no primeiro minuto.
Costa cumpriu a sua parte por
SMS logo na manhã seguinte. Faltava agora compor o ambiente. Em primeiro lugar,
era preciso impedir que o debate público resvalasse para regiões
inconvenientes. A rolha usada foi a venerável figura jurídica da “presunção de
inocência”. É uma garantia processual, que obriga os tribunais a considerar o
acusado como inocente até a sentença transitar em julgado. Durante esta semana,
passou a ser outra coisa: a obrigação de toda a gente proclamar solenemente a
inocência de quem ainda não tenha sido condenado. A prisão de um ex-primeiro
ministro, suspeito de crimes cometidos durante o seu governo, foi assim reduzida
a um caso jurídico, que só os técnicos estavam autorizados a comentar.
Conseguido isto, faltava
tratar do detido. Não era uma manobra fácil. Convinha que não se sentisse
abandonado (sabe-se lá como poderia reagir), mas também não convinha incorrer
em solidariedades comprometedoras. O Dr. Soares foi destacado para a missão,
com excelente efeito. A veemência da sua visita, graças à licença de
excentricidade de que hoje beneficia, não responsabilizou ninguém, mas terá
bastado para consolar o novo inquilino da prisão de Évora, ao ponto de ser ele
próprio, nesse mesmo dia, em comunicado nocturno, a libertar os seus antigos
correligionários de qualquer obrigação. Na FIL, este sábado, o galo pôde cantar
três, seis, nove vezes.
Não devemos regatear aplausos:
esta foi talvez a mais brilhante operação política dos quarenta anos de
democracia. Costa apareceu no congresso à vontade, ao ataque. Citou Renzi,
comentou o Papa, açoitou o governo, remoeu as ideias mais velhas do regime
(qualificação, modernização) como se fossem frescas revelações divinas — e
ignorou Sócrates. No fim, os aplausos continuaram nas páginas dos jornais, nos
ecrãs de televisão. O país político estava encantado. Depois de superado o
choque com Seguro, Costa ultrapassava a prisão de Sócrates, e proporcionava à
nação o espectáculo reconfortante da maior demonstração de disciplina
partidária de que há memória. Houve logo quem, na vaga de entusiasmo, lembrasse
que a Casa Pia antecedera a maioria absoluta.
O estimado professor Marcelo
tentou há dias intrigar o povo com a hipótese de que Costa fosse um génio. Mas
a genialidade está ao alcance de qualquer político quando todo o regime se
reúne para o amparar, a começar pela direita. Desde o PREC que a direita vê no
PS a sua muralha da China. Os mais velhos ainda temem o PCP. Os mais novos
receiam um “Podemos”. A direita dos interesses, que até gostou de Sócrates,
passou a crise a lamentar que o PS não estivesse no governo. Daí o chuveiro de
institucionalismo desse lado. Aprendemos que as pessoas não são as instituições,
que as instituições estão a “funcionar”, que a “normalidade” nunca foi tão
normal. Sim, o Dr. Pangloss fez escola em Lisboa.
De facto, toda a oligarquia
estava interessada em conter o escândalo. Talvez o ex-primeiro ministro agora
preso seja, como alguns desesperadamente desejam, caso único, sem igual. Mas
este regime deixou-o ascender e, durante seis anos, desempenhar o cargo que lhe
terá permitido, apesar das dúvidas de sucessivas investigações e processos,
praticar os delitos de que é suspeito. O que é que isso diz do regime? Toda a
gente nos ensina agora que as instituições “funcionam”. Mas nunca funcionaram
enquanto o ex-primeiro ministro mandou e, alegadamente, executava crime atrás
de crime. O seu governo acabou, não por causa dos escândalos e das suspeitas,
mas só porque a falta de dinheiro o precipitou na sequência fatal dos PEC. Que
se deve pensar de instituições que precisam de grandes crises financeiras para
“funcionarem”?
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