Helena Matos
Um rapaz anavalhado no comboio por uma
gangue à frente dos passageiros. Uma esquadra invadida. Onde estão as notícias
sobre a criminalidade? Onde está o lápis azul?
“O comboio que fazia a
ligação entre Sintra e Lisboa ia cheio. Eram cerca das 22h00 quando, na passada
segunda-feira [21 de Novembro], um grupo de mais de vinte jovens entrou na
estação do Cacém. Numa das carruagens cercaram a vítima de 19 anos e, além de
murros e pontapés, esfaquearam-na por diversas vezes nas costas e nas pernas. O
terror na carruagem só terminou quando o comboio voltou a parar, em Barcarena.
Para trás ficou o jovem gravemente ferido. (…) a agressão brutal aconteceu na
sequência de uma rixa entre grupos rivais. Outro jovem foi igualmente esfaqueado,
mas os ferimentos não eram graves.”
E o que terão feito os
restantes passageiros da composição? Gritaram? Tentaram impedir o ataque?
Fizeram de conta que não viram nada? Um dos passageiros relatou ao Correio
da Manhã donde esta notícia foi retirada (donde mais poderia ser?):
“Fiquei apavorado. Aquilo
foi horrível, não paravam de esfaquear o miúdo. Quando o comboio parou, o grupo
começou logo a fugir. Os passageiros chamaram o INEM porque o rapaz estava
mesmo mal, cheio de sangue. Eles deviam conhecer-se porque foram direitos à
vítima, não ameaçaram mais ninguém. Quase todos tinham navalhas nas mãos. Andar
na Linha de Sintra é andar todos os dias com o coração nas mãos”.
Quantos jornais, revistas,
rádios ou televisões deram esta notícia? Sim, quantos foram?
O fastio, quando não o asco à
realidade, impera em muito do que nos chega através do jornalismo. Não deixa
aliás de ser sintomático que o grande investimento das redacções de referência
incida agora na transcrição de ficheiros obtidos através de fugas de
informação on line. Na verdade temos jornalistas mais capazes e com
mais meios para desencriptar ficheiros que mostram o rasto do dinheiro de
alguns poderosos do que para fazer reportagens sobre a violência na Linha de
Sintra.
Claro que se a gangue agressora
ostentasse suásticas, sobretudo se o grupo, com suásticas ou não, tivesse
anavalhado um cão, o assunto seria abertura de telejornal. Pediam-se penas
exemplares. As redes sociais teriam fervido de indignação e transformariam num
herói aquele que se tivesse metido de permeio. (Já no caso da vítima humana
quem lhe acudisse estava obviamente a meter-se num assunto que não lhe dizia
respeito.) Ainda se a agressão tivesse acontecido à porta de uma discoteca… Mas
assim, ali, no comboio da Linha de Sintra corre-se de imediato o risco de se
ser acusado de populismo e vários outros ismos. Às estações da periferia os
jornalistas de referência só vão no séquito de ministros em dias de anúncio de
obra, performance multicultural ou acompanhando activistas que delimitam o que
se vai ver e ouvir.
Este afastamento das notícias
do quotidiano dos mais pobres e frágeis teve um dos seus momentos simbólicos
nas últimas eleições norte-americanas, em que se assistiu ao vivo e em directo
à derrota desse mundo das redacções onde cada vez mais se confunde virtual com
virtuoso e o povo só é passível de ser apresentado através da grelha do
politicamente correcto.
Por mais patético que tal
possa parecer, a verdade é que se em vez de ter sido anavalhada e espancada a
vítima se tivesse queixado de discriminação racial ou de género por parte dos
outros passageiros ou do revisor certamente que logo apareceriam vários
activistas amplificando a sua queixa. Assim ficou esquecida. Omitida. Nem
sequer sabemos se sobreviveu. Na verdade censurada. Porque esta invisibilidade
que recai sobre as questões da insegurança é tal que, como nos tempos em que
existia oficialmente censura, acabamos a ser informados dos factos através de
comunicados oficiais.
Por exemplo, até à divulgação
do comunicado da PJ a 7 de Dezembro, dando conta da detenção de seis homens
pelo pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) da comarca de
Santarém, quantas notícias se fizeram sobre esquadras invadidas naquela região
por um grupo que extorquia comerciantes? E sobre as ameaças às famílias dos
agentes da PSP que investigavam as actividades destes homens? Note-se que houve
quem fosse obrigado a passar bens para o nome dos agora detidos; quem, por ter
resistido à chantagem, tivesse ficado com lojas destruídas… Será possível que o
sentimento de impunidade fosse tal que tenha acontecido uma invasão de
esquadra? Mas onde fica essa esquadra? Penso eu que num país como Portugal uma
invasão de esquadra é algo de tão anómalo que, a acontecer, devia ser objecto
de algum destaque noticioso. Mas nada. Ou quase nada. E note-se que o
comunicado da PJ alude a “repetidos atos de violência contra agentes e
instalações de autoridade pública.” Repetidos, sublinhe-se.
O que de mais próximo vi disto
eram as notas oficiosas que as autoridades portuguesas publicavam nos anos 50 e
60 a dar conta dos incidentes ocorridos nas manifestações que oficialmente
nunca tinham acontecido. Mas note-se que nesse tempo havia censura. E agora o
que há? Onde está o lápis azul que condiciona as notícias sobre os crimes
contra as pessoas?
Como sempre acontece com todas
as censuras do mundo – e a auto-censura é uma das formas mais eficazes de
censura – o ridículo banaliza-se. Quando um jornal como o El Pais faz o
seguinte título “Muere un turista italiano al entrar por error en una favela de Río de Janeiro”para não escrever que o turista foi pura e
simplesmente baleado ao fim de percorrer escassos 300 metros no Morro dos
Prazeres sobra-nos o riso ou o lamento. Ou talvez ambas as coisas.
O desprezo a que as elites
votam as questões da segurança das pessoas comuns – assunto que nada tem a ver
com a espectacularidade reservada a actos como os imputados a Pedro Dias – é um
sinal da sua enorme arrogância, da sua cegueira ideológica e também da sua
alienação. Já o temor e a hipocrisia com que os líderes dos partidos
democráticos encaram este assunto vai custar-nos caro.
PS. Ao contrário do que
acontece com os crimes contras as pessoas, que existem mas de que parece mal
falar, outros temas são-nos impostos como se neles existisse uma urgência
inadiável. Na última semana entrou na agenda a palavra descentralização: “Costa quer fazer da descentralização uma “pedra angular da reforma do Estado”; “Costa desafia PSD para descentralização já em 2017”;
“Costa quer descentralização aprovada em 2017”; “Costa defende descentralização para celebrar poder
local”… E assim, seja na versão celebração ou pedra angular,
ficamos a saber que Costa quer. E basta sermos informados que Costa quer para
que o país se adeque ao seu querer. Sem mais detalhes nem explicações. Ora
aquilo a que agora eufemisticamente se chama descentralização e desconcentração
mais não é que a regionalização que o país recusou em referendo. Logo, apesar
da exaltação com dar como consumado o que Costa quer, há que lembrar que há
outros quereres nesta matéria.
Título e Texto: Helena Matos,
Observador,
12-12-2016
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Parabéns Helena Matos, por não ter medo e por chamar os animais pelos nomes. Continue, que alguns agradecem.
ResponderExcluirEu, sobre o assunto só quero fazer uma pergunta:
A carruagem ia cheia, mas suponhamos que daquela malta toda, havia um que não era cobarde e que por acaso tinha uma pistola e dava cabo de 3 ou 4 dos bandidecos (estes tipos, nem bandidos são). o que lhe acontecia?
Resposta: ia preso, era vilipendiado, tinha a vida destruída e apanhava 25 anos de cadeia.
Já agora outra pergunta: o que aconteceu ao bandidecos?
Resposta: nada e mesmo que sejam apanhados, vai dar em nada.
É caso para outra pergunta: onde pára a polícia?
Resposta: no filme.
Em 2013 fui assaltado à mão armada em Vila Nova de Gaia por volta das 20h. Após o assalto dirigi-me de imediato ao posto de gnr mais próximo (arcozelo), para fazer um auto da ocorrência. Não tinha qualquer esperança de reaver o dinheiro mas achei que a informação do sucedido seria importante para a prevenção do crime na região. O patético aconteceu quando encontrei o posto trancado e tive de ser interrogado por um agente a partir de uma janela do primeiro andar antes de entrar para elaborar o auto. O agente, uma vez dentro do posto, explicou que estava sozinho, e que tinha receio de assaltos porque as armas da gnr sao cobiçadas por criminosos.
ResponderExcluirSaí as 23h do posto, assaltado, e sem jantar. O unico conselho que obtive foi: "ponha a boca no trombone... temos dedar cabo do passos coelho, a culpa é dele". hoje nao ha passos coelho.. logo o trombone é um assobio... para o lado.
O artigo não informa a raça (ou a cor) dos "mais de vinte jovens"...
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