Péricles Capanema
Em 16 de novembro o Dicionário
Oxford, publicação de enorme prestígio, divulgou a palavra do ano, pós-verdade
(post-truth), utilizada 2000% mais vezes em 2016 que em 2015. Pós-verdade virou hit,
vem sendo empregada nas mais diversas acepções. Em sua definição, o Dicionário
Oxford destacou “fatos objetivos são menos influenciadores na
formação da opinião pública que apelos à emoção ou à crença pessoal”.
Convém analisar seu significado mais interno, o que vou fazer pouco adiante.
“O uso da palavra aumentou
muito em junho, com todo o frenesi do Brexit e das eleições nos Estados Unidos.
Nos últimos tempos não houve sinais de que seu emprego venha a cair; não
ficaria surpreendido se pós-verdade se tornasse uma das palavras que definem a
nossa era”, observou Casper Grathwohl, presidente da Oxford
Dictionaries.
Pós-verdade ser
escolhida palavra do ano tem seu peso. Importa muito mais em ser considerada
símbolo de nossa era. Na política, no Direito, na literatura, na economia, o
mais importante na prática era o que mais impressionava. Acontecia o seguinte,
contudo: a verdade e a objetividade ainda impressionavam muito. Hoje nem tanto,
afirma a comissão escolhida pelo Dicionário Oxford, e muitos a
acompanham na mesma opinião. Congruentemente, na hora de pensar, decidir e
aderir, o peso da emoção, da fantasia, das ideias preconcebidas, das obsessões,
até dos xodós e das birras subiu. A grande barreira contra o absurdo na vida
privada e pública é a racionalidade. Enfraquecida, escancara-se a porta para
todo tipo de loucuras.
Resumindo, a era da pós-verdade traz consigo — fato agora reconhecido e confessado — o definhamento da relevância da verdade e da objetividade na vida privada e pública. Não surpreende tornar-se cada vez mais comum o pouco interesse pela verdade e a importância crescente das emoções na vida privada e pública.
Resumindo, a era da pós-verdade traz consigo — fato agora reconhecido e confessado — o definhamento da relevância da verdade e da objetividade na vida privada e pública. Não surpreende tornar-se cada vez mais comum o pouco interesse pela verdade e a importância crescente das emoções na vida privada e pública.
A promessa do iluminismo que
embaiu multidões foi a de que a razão soberana iluminaria o mundo. A seguir
disseminou-se no Ocidente o positivismo, espécie do gênero racionalista que
reivindicou a importância do fato verificável pelos instrumentos da ciência
experimental. Desvalorizou o restante do conhecimento humano. Também seduziu
multidões sem-número ao longo das décadas. O mundo da pós-verdade vira
as costas para o racionalismo e o positivismo. Anacrônicos, Descartes, Kant,
Voltaire, Diderot, Comte. Durkheim e tantos outros deslizam rumo à
irrelevância. A nova situação dá origem ao que nos Estados Unidos se chama de post-truth
politics ou post-fact politics (política pós-verdade
ou política pós-fato).
O fenômeno foi agravado pelas
redes sociais. Com menos instrumentos de controle, ali existe espaço amplo para
todo tipo de discurso e informações, mesmo os mais disparatados. Podem circular
sem contestação eficaz enxurradas de inverdades, exageros, invenções. Barack
Obama aludiu ao fenômeno ao tentar justificar a derrota de sua candidata. Para
ele, Donald Trump sabe se mover no novo meio, “ecossistema em que fatos
e a verdade não importam; você atrai a atenção, desperta emoções; você pode
surfar essas emoções”.
Na era da pós-verdade,
cada grupo tem seu conjunto de crenças, desinteressa-se do restante. Cresce a
fragmentação social, generalizam-se as pessoas fechadas em pequenos círculos de
interesses, ideológicos, sociais, econômicos. Em tal clima o debate se torna
virtualmente inútil. Colin Crouch, cientista político inglês, cunhou o termo
pós-democracia como realidade próxima e ameaçadora. Indica a situação em que
formalmente existe a democracia, há eleições e mudanças de governo, mas não
mais sua base, a contenda real de ideias. De forma análoga, a pós-verdade,
ambiente largamente apático à verdade, nos arrastará à pós-democracia.
O processo tem raiz antiga nas
paixões desordenadas e na falta de ascese intelectual. Ausente a temperança,
abundam as paixões em tumulto, desorientam-se as inteligências vagabundas.
Ninguém nega que sempre foi possível utilizar a mentira para influir os
espíritos e governar as pessoas. Os exemplos aí estão aos milhões, no Brasil e
no mundo todo. Da História, pinço dois. Luís XIV jamais afirmou: “L’État
c’est moi” (O Estado sou eu). A frase falsa tem sido manejada com
relativo êxito contra ele e o Antigo Regime. Maria Antonieta nunca observou: “S’ils
n’ont pas de pain, qu’ils mangent de la brioche” (Se eles não têm pão,
comam brioche). Vibradas contra ambos e contra as cortes em que viviam, elas e
outras armas de difamação fizeram enorme estrago. O alarmante é o agravamento
da apatia frente à verdade, reconhecido e confessado por corifeus da
modernidade. Fatos e afirmações absurdas se tornaram mais fáceis de divulgar e
têm potencialmente efeitos mais devastadores.
*
* *
Para finalizar, até mesmo a pós-verdade pode
ter esse uso. Muita gente tem garantido que o triunfo do NÃO no
plebiscito colombiano, a vitória do Brexit e o êxito de Trump
só foram possíveis porque já vivemos num generalizado clima de pós-verdade.
É a análise simplista e deformadora. Mas o espaço acabou; o tema fica para
eventual artigo futuro.
Título, Imagens e Texto: Péricles Capanema, ABIM, 11-12-2016
Título, Imagens e Texto: Péricles Capanema, ABIM, 11-12-2016
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