Paulo Tunhas
A culpa é sem dúvida da oposição a Maduro.
Representasse ela uma Ideia (com maiúscula) de uma sociedade nova, a promessa
de uma “sociedade-outra”, e ninguém conseguiria calar Boaventura Sousa Santos.

No outro dia vi Maduro na
televisão. Numa espécie de caricatura de certos personagens das aventuras
latino-americanas de Tintim, gritava vezes sem conta: “Saca tus manos de
Venezuela, Donald Trump” (pronunciar: Truuum). As ditaduras
precisam, como se sabe, de inventar inimigos externos e Trump, ou Obama, dão
sempre jeito. Além disso, o ridículo não incomoda, mesmo quando toma a figura
do grotesco. O problema é que o grotesco é muitas vezes a antecâmara do horror.
Mas estas coisas não parecem
incomodar muita gente. Mesmo que os detalhes todos concretos se encontrem à
disposição de quem os queira conhecer, como, por exemplo, no excelente artigo
de João Almeida Dias publicado aqui no Observador, “Quem são os «coletivos» que
defendem o regime de Maduro com armas?”. Nunca incomodaram. Os regimes
ditatoriais que se apresentam como “de esquerda” têm uma longa tradição de compreensões
e afetos. O nosso PC, campeão desta disciplina, prolonga, de resto, a sua
insigne história no que respeita à Venezuela. Mas a coisa vai muito além do PC,
desgraçadamente.
A culpa é sem dúvida da
oposição a Maduro. Representasse ela uma Ideia (com maiúscula) de uma sociedade
nova, a promessa de uma “sociedade-outra”, como se diz, e ninguém conseguiria
calar, por exemplo, o Prof. Boaventura Sousa Santos, cuja lista de indignações,
e de explicações delas, é imensa e conhecida. O problema dos venezuelanos é
terem pouco para oferecer no capítulo. Não dão que sonhar. Vejam do que é que
eles precisam e reivindicam: os mais banais medicamentos, os mais triviais
alimentos, e até, imaginem, papel higiénico. Querem pôr-nos a sonhar com isto,
os rústicos? Que falta de imaginação! Ah, falam também de liberdade, é verdade.
Mas que liberdade tão pouco heroica, tão pouco Patria o muerte! Quem quer uma liberdade tão prosaica precisa
obviamente de uma ditadura que lhe ensine a desejar uma liberdade maior e mais
verdadeira. Uma liberdade com uma Ideia. Falem com o passarinho e talvez nos
seduzam.
Entretanto, merecem é
desprezo. Isso a gente tem em abundância. O desprezo por aquilo que é comum,
pelos medos triviais, pelos desejos elementares, pelos sofrimentos passivos do
dia-a-dia, por tudo aquilo que é vivido sem promessa de um Bem político maior e
que até pode contra ele militar. Lenine, como de costume, educou-nos no
capítulo, como muito bem sabem os camaradinhas do PC. Em 1891 e 1892, na região
do Volga, uma horrível fome matou, segundo estimativas verosímeis, 400.000
súbditos de Alexandre III. A desgraça perturbou muita gente, como Tolstoi, que
fez tudo para a minorar. Uma pessoa não se perturbou absolutamente nada:
Lenine, é claro. A fome era, na cabeça de Vladimir Ulyanov, o produto da
industrialização capitalista. E, na altura, de acordo com a ciência marxista
(haveria depois de sustentar o contrário), quanto mais depressa chegasse o
capitalismo à Rússia, mais rápido viria, a seguir, o socialismo. Os mortos eram
mortos necessários. A escola dos cadáveres, para roubar um título célebre de
outras bandas, veio para ficar.
E ficou, como ficou o desprezo
pelo comum. Gerações e gerações de intelectuais comunistas de orientação
variada ensinaram-nos que o advento do Grande Acontecimento, a Revolução, não
se compadecia com a comezinha piedade burguesa. O desprezo por tudo o que não
transporta uma Ideia de futuro tornou-se uma segunda natureza. Os indivíduos
são acidentes da história, contingências, pura espuma de superfície. Os
venezuelanos mortos, os venezuelanos presos, não significam nada. Que ideia refletem
eles, que necessidade revelam?
Esta maneira de ver as coisas
é, sob roupagens mais pacatas, muito mais difundida do que pode parecer. Ela
subjaz a muitas das análises que se vão fazendo do que se passa neste nosso
confuso mundo. O desprezo pelo comum é para muitos o fio condutor que determina
a escolha de causas. Inclusive aquelas que se pretendem uma defesa das
minorias, ou, para falar a linguagem dos tempos, do outro. A aparência da
abertura de espírito pode bem ser sinal de um seu particular fechamento. A
defesa do outro, transformada em guia da vida política, é muitas vezes uma
questão de distinção, um modo de não nos confundirmos com os outros mais
comuns, de evitar nos pôr no lugar deles. Os outros são insignificantes, só o
outro é significativo. E que merece o insignificante senão desprezo? Efetivamente,
desprezo é o que mais há por aí.
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