Rui Ramos
Os oligarcas não querem que se “faça
política” com a tragédia. Mas se não “fizermos política” com a morte evitável
de 64 pessoas, para que serve a política? Só para festejar vitórias na
Eurovisão?
Sim, nem tudo é previsível ou
controlável. Se no fim de semana passado tivesse caído um enorme nevão no
Algarve, teria sido um acontecimento extraordinário e creio que todos
perceberíamos que o país não estivesse preparado. Mas no fim de semana mais
quente do ano, com temperaturas elevadas e ventos fortes — a ninguém ocorreu a
probabilidade de fogo e a necessidade de tomar providências, como por exemplo
alertar a população, numa região de floresta densa e abandonada, em que quase
todos os anos há grandes incêndios? No sábado, houve 156 ignições em todo o
país, o que quer dizer que o incêndio de Pedrogão-Grande não foi uma singularidade.
Mas o principal é isto: o incêndio terá sido detectado por volta das 14h00, e a
maior parte das mortes terão acontecido ao fim da tarde, na estrada, depois das
18h00. Que fez o Estado durante toda essa tarde? Tudo isto se parece demasiado com
a crónica de muitas mortes anunciadas.
Não, não é a altura para
discutir a limpeza das matas e das bermas da estrada, a desertificação do
interior, a propriedade rural, o aquecimento global e a relação dos seres
humanos com a natureza. Tudo isso são temas muito interessantes, mas desta vez
temos de resistir à mania nacional de fazer derivar as conversas. Neste
momento, há apenas uma questão relevante: o Estado tem um sistema de proteção
civil, e esse sistema falhou tragicamente. Porquê? A “natureza” e os “problemas
estruturais”, como o mitológico ordenamento do território, não ilibam o
sistema, porque a proteção civil existe para defender as populações nas
condições existentes, mesmo quando tudo é “muito rápido”, e não apenas em
condições ideais, como fossem aquelas em que o país se tivesse desenvolvido de
outra maneira ou a progressão dos fogos fosse sempre muito lenta.
Talvez seja preciso explicar
isto a muitos comentadores, mas não à oligarquia política, que pressentiu o que
estava em causa desde o primeiro momento. Afinal, houve regimes que ficaram
feridos na asa por muito menos. Daí a garantia inicial de que tudo tinha sido
bem feito. Daí a proclamação da “unidade nacional”, para barrar dúvidas e
perguntas. Daí as visitas ao terreno, de colete da proteção civil e olho
húmido, para simular “proximidade”. Mas na segunda-feira, já era claro que
distribuir afeto e culpar a “natureza” não iam chegar. Foi quando o primeiro
ministro antecipou, para memória futura, as perguntas que toda a gente começava
a fazer.
Tudo isto é espantoso. Temos
um Estado que gasta o equivalente à metade do PIB e que tem por sua conta cerca
de 13% da população empregada, mas que não tem gente nem meios para lidar com
uma emergência previsível, ou capacidade para enquadrar ajuda, como se viu no
caso da oferta do Xunta de Galicia, asperamente desprezada como “excesso de
voluntarismo”.
Ninguém está a exigir
milagres, o domínio total da natureza ou a correção súbita da história. Pede-se
apenas que as coisas funcionem regularmente. Porque não foi isso que aconteceu.
Sim, o fogo num terreno montanhoso, com muito vento, é imprevisível. Mas
durante a tarde de terça-feira, o Estado nem sequer conseguiu, durante horas,
confirmar se tinha ou não caído um avião.
Os oligarcas não querem que se
“faça política” com a tragédia. Mas se não “fizermos política” com a morte
evitável de 64 pessoas, para que serve então a política? Só para festejar
vitórias no Festival da Canção? A oligarquia convenceu-se recentemente de que a
política são uns abraços. Mas a política não devia ser um programa televisivo
da manhã, mas o debate sobre o estado de um país onde desta vez faltou a sorte
que houve noutras ocasiões. Porque com esta oligarquia política, só a sorte nos
pode valer.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
21-6-2017
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