terça-feira, 27 de junho de 2017

[Aparecido rasga o verbo] Viúva inconsolável

Aparecido Raimundo de Souza

O RATO CHEGOU todo cheio de si, cutucou o gato e disse impostando uma voz grossa e firme:
- Meu chapa, é o seguinte. Hoje eu vim aqui com uma única finalidade. Acabar com a sua raça.
Antes de responder, o doméstico caseiro com cara de Fígaro (aquele famoso gato do mestre carpinteiro Gepeto) se empertigou todo e sorriu com desdém.

- Estou pagando para ver, seu insignificante espécime comum. Eu é que pretendo pôr um fim definitivo em você e sua irritante empáfia. Assim que acabar a minha saborosa refeição. Saiba que partirei para cima de seus costados como um rolo compressor. Fique preparado que daqui a alguns minutos você virará picadinho. Será a minha sobremesa, após todas essas guloseimas que estou mandando para dentro.

Foi a vez do pequeno roedor cair em gostosa gargalhada:

- Você vai fazer picadinho de mim? Kikikikikikikikikiki... saiba que sou eu quem está pagando para ver...

O felídeo virou o derradeiro gole do suco que bebia e observou:
- Você é tão imprestável e sem importância, que nem me darei ao trabalho de interromper a minha prazerosa e nutritiva refeição. Isso equivale dizer que você será a sobremesa. Faz tempo que não mando para a barriga um bom pedaço de carne de rato. Olhando para seus cornos, me vem à lembrança a figura do Chumbinho.




- Kikikikikikikikikiki...
- Ria mesmo, meu chapa. Divirta-se até não poder mais. Seus minutos estão contados.
- Seu frajola bobalhão. Vá ver se eu estou ali na esquina.
- Me traz um pedaço de queijo, que aproveito e ponho na sua boca, para que engula como a gororoba terminal.
- Seu tolo. Sem noção. Lembra que ontem eu coloquei esse chocalho que agora balança no seu pescoço? Ou será que esqueceu? Que mico você deve estar pagando!

De fato, a essa lembrança, o bacamarte ficou pê da vida. Essa proeza mexeu com seus brios. Realmente acordara com um guizo pendurado. A princípio pensara que fora seu velho dono, todavia, logo depois, chegou à conclusão que estava completamente errado. O velho senhorio, seu amo, havia viajado e ainda não voltara. Fuzilou o indefeso rato de laboratório, alguns passos à sua frente. O primeiro ímpeto que lhe veio à cabeça foi saltar sobre o desamparado.

Acabar, de vez, com a sua fanfarronice. Contudo, confiante na sua superioridade, refreou os impulsos e manteve a calma. Aquele imbecil não perderia nada por esperar. Sua hora a passos largos chegava. Seria divertido e engraçado tripudiar um pouco mais sobre o pobrezinho, antes de torná-lo a sua sobremesa preferida pós jantar de fim de tarde. Manteve a conversa.
- Não foi você...
- Claro que fui eu.

- Não foi. Deixa de ser mentiroso.
- Quer saber? Você estava dormindo igual a um bêbado sem dono no tapete do quarto de seu patrão. A mim me pareceu que você havia bebido todas.
- Não sou dado a bebidas, seu imbecil. Sou um gato, não um pinguço.
- Quase me esquecia do ronco. Barbaridade! Parecia uma dessas britadeiras que quebram asfaltos de rua.

O gato, meio que impaciente, resolveu provocar o insolente opositor. Atazanou desafiando:
- Prove que foi você quem me colocou o guizo.
- Tem minha palavra.
- Sua palavra de rato e uma bicicleta sem rodas não me valem de nada. Você não passa de um camundongo de esgoto.

- Já imaginou se seus amigos aqui das redondezas ficarem sabendo dessa minha proeza?
- Confesso que seria vexatório. Todavia, meu amado, eles não saberão. Dessa noite você não passará.
- Queria ver a cara da sua namoradinha, a linda e esfuziante gatinha Lilica. Com certeza seu renome e cotação de bichano machão explodiriam no espaço. De roldão a sua majestade “gatal” cairia por terra.

- Que interessante! Pena que Lilica jamais saberá. Ao contrario, chegará aos ouvidos da bela donzela, outra noticia. A da sua partida para os cafundós dos quintos.
- Ok! Antes que eu acabe com a sua graça, com seu ar de superioridade... e uma vez que não acredita em mim, nem aceita a minha palavra de rato, gostaria de provar a você, aqui e agora, que realmente fui eu quem colocou esse guizo no seu lindo pescoço.

- E como pretende demostrar essa proeza? Vindo até mim e retirando o guizo e depois o colocando de volta?
- Tecnologia, meu caro. Tecnologia...
- Não estou entendendo...
- Num piscar de olhos entenderá tudo.

A um gesto seu um segundo ratinho (lembrava Fievel) entrou em cena trazendo, nas mãos um aparelho celular.
- Gostaria que desse uma olhada no que fiz gravar com muito cuidado.
O Hamster largou o celular perto do gato e tratou de cair fora o mais rápido que pode.
- Vamos sabichão. Assista ao vídeo.
O gato se abaixou e pegou o celular. Abriu e...

Sua indignação aumentou. Criou forma e vida. Foi mais longe. Triplicou de tamanho a sua ira dentro da sua vontade de destruir e matar. Agora, mais que nunca, precisava acabar com aquele infeliz. Seu ódio chegou ao limite e não demoraria muito, explodiria como uma bomba.
- Acredita, agora?
- Você deu sorte. Eu estava cansado. Apesar disso, meu amado, não terá muito tempo de vida para comemorar. Seu fim acaba de ser adiado...

- Já que serei sua vítima, como pretende acabar comigo?
- Astúcia meu camarada. Astúcia. Já ouviu, alguma vez, essa palavrinha mágica? De mais a mais, seu idiota de uma figa, desde quando um traste de um rato da sua laia tem audácia para nocautear um bicho da minha estirpe e tamanho?
- Quer apostar?
- Lembra que sou um gato safo, ladino, experiente, ágil, esperto, senhor do meu nariz. Fala sério, mano...
- Se você soubesse quem realmente eu sou, começaria a se preocupar...

O Gato não aguentou e caiu de novo em estrondosa gargalhada. Chegou a chorar de tanto que riu.
- Quem é você? Não me faça ficar mais enfezado do que estou. Rir, em certas horas, é bom, faz bem, porém, provoca dores de barriga. Você é um rato, e como tal, pior ser existente na face da terra. Um verme de esgoto, eu diria, sem medo de errar. Até onde sei, serve unicamente para transmitir doenças.
- Qual o quê! Os gatos também transmitem.

- Que conversa fora de esquadro, malandro. Qual é a sua?
- Vou enumerar algumas enfermidades oriundas da sua linhagem.
- Faça isso. Sou todo ouvidos. Comece.

- Você transmite a toxoplasmose.
- Fala difícil, o sacana! Que isso?
- É aquela doença que os humanos pegam em contato com as suas fezes. Darei um exemplo simples. Se uma mulher estiver grávida, em contato com os excrementos que você deixa pela casa, pelos jardins, corredores e quartos, poderá prejudicar o futuro bebê e ele nascer com problemas de malformação.

- Interessante... continue...
- Alergia respiratória. Vocês, ao contrario de nós, camundongos, produzem uma proteína que a medicina dá o nome de glicoproteína.
- Glicoproteína?

- Sim senhor. Ela desencadeia um leque de sintomas inoportunos, como espirros, inchaços das pálpebras dos olhos, não mencionando a asma e etc...
- Para um rato cagalhão você é um sujeito sabido.
- Você ainda não viu nada. Temos também a Micose de Pele. Capitaneada, claro, pelo contato da sua com a de seu dono. Isso acaba sempre em vermelhidão o que redunda numa coceira desgraçada. Só de falar meu corpo começa a dar sinais de comichão. Ai, ui, ui, ai...

- Vá em frente. Estou gostando do seu blá-blá-blá. Fale mais, antes que eu me compraze com seu mísero corpinho, cujo tamanho não satisfará meu aguçado apetite.
- Seu rato, digo, seu gato malvado. Você é o causador da Esporotricose.
- O que é isso? Acaso se come? 

- Calma, seu gato burro. Vou explicar, Mané. Esporotricose se pega quando você, numa brincadeira inofensiva e sem maiores contemplações, morde ou arranha alguém. Um simples triscar de suas afiadas unhas bastará para deixar suas vítimas em maus lençóis, ou seja, com feridas e lesões incicatrizáveis. 
- Ok. Cansei. Abarrotei, entulhei o saco. Estou por aqui. Posso me preparar para liquidar com a sua carreira de rato?

- Ainda não... tem mais.
- Uauuu...! Mais? 
- Com certeza. Você, gato mal-acabado, criatura feia, nojenta, repugnante, é igualmente responsável pela Síndrome da Larva Migrans Visceral.
- Como é que é?

- Eu explico. Quando as pessoas, por qualquer motivo, entram em contato com seu nojento cocô, essa bosta está cheia de ovos da tal verminose. É através dela, que os incautos contaminam o intestino, o fígado, o coração e os pulmões. Sem falar em dificuldades e embaraços os mais intrincados.

- Entendo! Bem, vamos ao que interessa. Como pode perceber, pela minha tez de gato com “g” maiúsculo, toda essa lengalenga fora de esquadro só contribuiu para aumentar assustadoramente o meu desejo veemente em relação à sobremesa pós-barriga cheia. Em razão disso...

- Relaxa. Não acabei ainda. Descrevi apenas algumas enfermidades. Tem mais... A lista...
- Meu enfadonho Stuart Little, nada mais me interessa. Se prepare. Sabe rezar? Comece agora.  Lembrando que será a derradeira coisa que fará antes de lhe... acomodar confortavelmente em minha barriguinha.

Sem que o gato perceba, o topolino que minutos atrás trouxera o celular reaparece em cena.  Traz consigo uma espécie de controle remoto. No que o gato pula, o pequeno animalzinho aciona um botão vermelho. O gato saltador cai aos trambolhões, batendo aqui e ali, como se atingido por uma enorme carga de corrente elétrica.  Estrebucha seu horror perto da porta de entrada da cozinha todo desmilinguido e acabado. Sem forças para se levantar. Sabe, por algum motivo, que chegou seu fim. Olha para o inimigo e tenta falar alguma coisa. Não consegue.

O rato, sorridente e feliz, se aproxima:
- Não te falei, bonitão? Agora você não passa de um miauzinho acabado, vencido, sem forças. Dentro de alguns minutos, estará completamente deletado, apagado. Eu venci. EU VENCIIIIII...
- O que... vo... você... seu mal... dito ra... to... fez co... co... migo?
- Tecnologia, meu caro. Os tempos mudaram. Pra seu governo, irei agora mesmo atrás de sua linda namoradinha. E... quando topar com ela...

Final
O pobre rato não teve tempo de terminar a frase. Lilica, a companheira do pobre agonizante, saltou sobre ele, de cima de um armário, num excitamento de perseguição sem precedentes.  Voou furiosa e aflita.  Atacada por uma inclemência implacável, a bela o estraçalhou de uma só abocanhada.
Título e texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. De Ribeirão Preto, interior de São Paulo. 27-6-2017

Colunas anteriores:

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-