Aparecido Raimundo de Souza
O RATO CHEGOU todo cheio de
si, cutucou o gato e disse impostando uma voz grossa e firme:
- Meu chapa, é o seguinte.
Hoje eu vim aqui com uma única finalidade. Acabar com a sua raça.
Antes de responder, o
doméstico caseiro com cara de Fígaro (aquele famoso gato do mestre carpinteiro
Gepeto) se empertigou todo e sorriu com desdém.
- Estou pagando para ver, seu
insignificante espécime comum. Eu é que pretendo pôr um fim definitivo em você
e sua irritante empáfia. Assim que acabar a minha saborosa refeição. Saiba que
partirei para cima de seus costados como um rolo compressor. Fique preparado
que daqui a alguns minutos você virará picadinho. Será a minha sobremesa, após
todas essas guloseimas que estou mandando para dentro.
Foi a vez do pequeno roedor
cair em gostosa gargalhada:
- Você vai fazer picadinho de
mim? Kikikikikikikikikiki... saiba que sou eu quem está pagando para ver...
O felídeo virou o derradeiro
gole do suco que bebia e observou:
- Você é tão imprestável e sem
importância, que nem me darei ao trabalho de interromper a minha prazerosa e
nutritiva refeição. Isso equivale dizer que você será a sobremesa. Faz tempo
que não mando para a barriga um bom pedaço de carne de rato. Olhando para seus
cornos, me vem à lembrança a figura do Chumbinho.
- Kikikikikikikikikiki...
- Ria mesmo, meu chapa.
Divirta-se até não poder mais. Seus minutos estão contados.
- Seu frajola bobalhão. Vá ver
se eu estou ali na esquina.
- Me traz um pedaço de queijo,
que aproveito e ponho na sua boca, para que engula como a gororoba terminal.
- Seu tolo. Sem noção. Lembra
que ontem eu coloquei esse chocalho que agora balança no seu pescoço? Ou será
que esqueceu? Que mico você deve estar pagando!
De fato, a essa lembrança, o
bacamarte ficou pê da vida. Essa proeza mexeu com seus brios. Realmente
acordara com um guizo pendurado. A princípio pensara que fora seu velho dono,
todavia, logo depois, chegou à conclusão que estava completamente errado. O velho
senhorio, seu amo, havia viajado e ainda não voltara. Fuzilou o indefeso rato
de laboratório, alguns passos à sua frente. O primeiro ímpeto que lhe veio à
cabeça foi saltar sobre o desamparado.
Acabar, de vez, com a sua
fanfarronice. Contudo, confiante na sua superioridade, refreou os impulsos e
manteve a calma. Aquele imbecil não perderia nada por esperar. Sua hora a
passos largos chegava. Seria divertido e engraçado tripudiar um pouco mais
sobre o pobrezinho, antes de torná-lo a sua sobremesa preferida pós jantar de
fim de tarde. Manteve a conversa.
- Não foi você...
- Claro que fui eu.
- Não foi. Deixa de ser
mentiroso.
- Quer saber? Você estava
dormindo igual a um bêbado sem dono no tapete do quarto de seu patrão. A mim me
pareceu que você havia bebido todas.
- Não sou dado a bebidas, seu
imbecil. Sou um gato, não um pinguço.
- Quase me esquecia do ronco.
Barbaridade! Parecia uma dessas britadeiras que quebram asfaltos de rua.
O gato, meio que impaciente,
resolveu provocar o insolente opositor. Atazanou desafiando:
- Prove que foi você quem me
colocou o guizo.
- Tem minha palavra.
- Sua palavra de rato e uma
bicicleta sem rodas não me valem de nada. Você não passa de um camundongo de
esgoto.
- Já imaginou se seus amigos
aqui das redondezas ficarem sabendo dessa minha proeza?
- Confesso que seria
vexatório. Todavia, meu amado, eles não saberão. Dessa noite você não passará.
- Queria ver a cara da sua
namoradinha, a linda e esfuziante gatinha Lilica. Com certeza seu renome e
cotação de bichano machão explodiriam no espaço. De roldão a sua majestade
“gatal” cairia por terra.
- Que interessante! Pena que
Lilica jamais saberá. Ao contrario, chegará aos ouvidos da bela donzela, outra
noticia. A da sua partida para os cafundós dos quintos.
- Ok! Antes que eu acabe com a
sua graça, com seu ar de superioridade... e uma vez que não acredita em mim,
nem aceita a minha palavra de rato, gostaria de provar a você, aqui e agora,
que realmente fui eu quem colocou esse guizo no seu lindo pescoço.
- E como pretende demostrar
essa proeza? Vindo até mim e retirando o guizo e depois o colocando de volta?
- Tecnologia, meu caro.
Tecnologia...
- Não estou entendendo...
- Num piscar de olhos
entenderá tudo.
A um gesto seu um segundo
ratinho (lembrava Fievel) entrou em cena trazendo, nas mãos um aparelho
celular.
- Gostaria que desse uma
olhada no que fiz gravar com muito cuidado.
O Hamster largou o celular
perto do gato e tratou de cair fora o mais rápido que pode.
- Vamos sabichão. Assista ao
vídeo.
O gato se abaixou e pegou o
celular. Abriu e...
Sua indignação aumentou. Criou
forma e vida. Foi mais longe. Triplicou de tamanho a sua ira dentro da sua
vontade de destruir e matar. Agora, mais que nunca, precisava acabar com aquele
infeliz. Seu ódio chegou ao limite e não demoraria muito, explodiria como uma
bomba.
- Acredita, agora?
- Você deu sorte. Eu estava
cansado. Apesar disso, meu amado, não terá muito tempo de vida para comemorar.
Seu fim acaba de ser adiado...
- Já que serei sua vítima,
como pretende acabar comigo?
- Astúcia meu camarada.
Astúcia. Já ouviu, alguma vez, essa palavrinha mágica? De mais a mais, seu
idiota de uma figa, desde quando um traste de um rato da sua laia tem audácia
para nocautear um bicho da minha estirpe e tamanho?
- Quer apostar?
- Lembra que sou um gato safo,
ladino, experiente, ágil, esperto, senhor do meu nariz. Fala sério, mano...
- Se você soubesse quem
realmente eu sou, começaria a se preocupar...
O Gato não aguentou e caiu de
novo em estrondosa gargalhada. Chegou a chorar de tanto que riu.
- Quem é você? Não me faça
ficar mais enfezado do que estou. Rir, em certas horas, é bom, faz bem, porém,
provoca dores de barriga. Você é um rato, e como tal, pior ser existente na
face da terra. Um verme de esgoto, eu diria, sem medo de errar. Até onde sei,
serve unicamente para transmitir doenças.
- Qual o quê! Os gatos também
transmitem.
- Que conversa fora de
esquadro, malandro. Qual é a sua?
- Vou enumerar algumas
enfermidades oriundas da sua linhagem.
- Faça isso. Sou todo ouvidos.
Comece.
- Você transmite a
toxoplasmose.
- Fala difícil, o sacana! Que
isso?
- É aquela doença que os
humanos pegam em contato com as suas fezes. Darei um exemplo simples. Se uma
mulher estiver grávida, em contato com os excrementos que você deixa pela casa,
pelos jardins, corredores e quartos, poderá prejudicar o futuro bebê e ele
nascer com problemas de malformação.
- Interessante... continue...
- Alergia respiratória. Vocês,
ao contrario de nós, camundongos, produzem uma proteína que a medicina dá o
nome de glicoproteína.
- Glicoproteína?
- Sim senhor. Ela desencadeia
um leque de sintomas inoportunos, como espirros, inchaços das pálpebras dos
olhos, não mencionando a asma e etc...
- Para um rato cagalhão você é
um sujeito sabido.
- Você ainda não viu nada.
Temos também a Micose de Pele. Capitaneada, claro, pelo contato da sua com a de
seu dono. Isso acaba sempre em vermelhidão o que redunda numa coceira
desgraçada. Só de falar meu corpo começa a dar sinais de comichão. Ai, ui, ui,
ai...
- Vá em frente. Estou gostando
do seu blá-blá-blá. Fale mais, antes que eu me compraze com seu mísero
corpinho, cujo tamanho não satisfará meu aguçado apetite.
- Seu rato, digo, seu gato
malvado. Você é o causador da Esporotricose.
- O que é isso? Acaso se
come?
- Calma, seu gato burro. Vou
explicar, Mané. Esporotricose se pega quando você, numa brincadeira inofensiva
e sem maiores contemplações, morde ou arranha alguém. Um simples triscar de
suas afiadas unhas bastará para deixar suas vítimas em maus lençóis, ou seja,
com feridas e lesões incicatrizáveis.
- Ok. Cansei. Abarrotei,
entulhei o saco. Estou por aqui. Posso me preparar para liquidar com a sua
carreira de rato?
- Ainda não... tem mais.
- Uauuu...! Mais?
- Com certeza. Você, gato
mal-acabado, criatura feia, nojenta, repugnante, é igualmente responsável pela
Síndrome da Larva Migrans Visceral.
- Como é que é?
- Eu explico. Quando as
pessoas, por qualquer motivo, entram em contato com seu nojento cocô, essa
bosta está cheia de ovos da tal verminose. É através dela, que os incautos
contaminam o intestino, o fígado, o coração e os pulmões. Sem falar em
dificuldades e embaraços os mais intrincados.
- Entendo! Bem, vamos ao que
interessa. Como pode perceber, pela minha tez de gato com “g” maiúsculo, toda
essa lengalenga fora de esquadro só contribuiu para aumentar assustadoramente o
meu desejo veemente em relação à sobremesa pós-barriga cheia. Em razão disso...
- Relaxa. Não acabei ainda.
Descrevi apenas algumas enfermidades. Tem mais... A lista...
- Meu enfadonho Stuart Little,
nada mais me interessa. Se prepare. Sabe rezar? Comece agora. Lembrando que será a derradeira coisa que
fará antes de lhe... acomodar confortavelmente em minha barriguinha.
Sem que o gato perceba, o topolino
que minutos atrás trouxera o celular reaparece em cena. Traz consigo uma espécie de controle remoto.
No que o gato pula, o pequeno animalzinho aciona um botão vermelho. O gato
saltador cai aos trambolhões, batendo aqui e ali, como se atingido por uma
enorme carga de corrente elétrica.
Estrebucha seu horror perto da porta de entrada da cozinha todo
desmilinguido e acabado. Sem forças para se levantar. Sabe, por algum motivo,
que chegou seu fim. Olha para o inimigo e tenta falar alguma coisa. Não consegue.
O rato, sorridente e feliz, se
aproxima:
- Não te falei, bonitão? Agora
você não passa de um miauzinho acabado, vencido, sem forças. Dentro de alguns
minutos, estará completamente deletado, apagado. Eu venci. EU VENCIIIIII...
- O que... vo... você... seu
mal... dito ra... to... fez co... co... migo?
- Tecnologia, meu caro. Os
tempos mudaram. Pra seu governo, irei agora mesmo atrás de sua linda
namoradinha. E... quando topar com ela...
Final
O pobre rato não teve tempo de
terminar a frase. Lilica, a companheira do pobre agonizante, saltou sobre ele,
de cima de um armário, num excitamento de perseguição sem precedentes. Voou furiosa e aflita. Atacada por uma inclemência implacável, a
bela o estraçalhou de uma só abocanhada.
Título e texto: Aparecido
Raimundo de Souza, jornalista. De Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
27-6-2017
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