segunda-feira, 26 de junho de 2017

Diário da antiga Corte

Bruno Garschagen


Passeando por Lisboa, sede da nossa antiga Corte, sinto cheiro da minha infância. As ruas, as pessoas, as construções lembram-me um certo Brasil da década de 1980. Há nos portugueses uma ingenuidade sincera, uma maneira singular de lidar com a vida e com o outro, elementos que deixamos desaparecer do nosso senso comum.

Ajuda essa peculiaridade a compreender por que tantos brasileiros, turistas ou imigrantes, ao reconhecerem Portugal como a sua casa, ou a casa de um familiar querido, desabrocham em elogios, apaixonam-se à primeira vista. E querem voltar a passeio ou nunca mais daqui sair.

A oikophilia, o amor pelo lar de que fala Roger Scruton, porque distinção humana, permite-nos reconhecer como casa aquilo que nos é familiar, que nos desperta o senso de pertencimento e de proteção contra os instintos destrutivos dos revolucionários.

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Desde 2007, quando vim pela primeira vez para residir, Portugal é o meu país. Portugal é o meu país justamente porque sou brasileiro. E ser brasileiro significa reconhecer e celebrar esse extraordinário capital cultural que nos foi legado pelos portugueses. Se nós, brasileiros, somos portugueses dilatados pelo calor, como escreveu Eça de Queiroz em 1872, partilhamos fidagalmente qualidades e senões. Em muita medida, ainda somos “expansivamente” o que os portugueses são “retrahidamente”.


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Estive num jantar, na semana passada, com um grupo de amigos em Lisboa. Um escrete estrelado, como diziam antigamente os cronistas de futebol. Cada um deles bem-sucedido e influente em seu ofício – literatura, jornalismo, mercado editorial, ensino universitário. A política dominou a conversa, posto que o momento está para isto mesmo seja em Portugal, no Brasil e no resto do mundo.

Ao fim do jantar, naquela conversa de despedida que dura quase o tempo da conversa principal, dois amigos (um de anos, outro de horas) levantaram um aspecto central, fundamental, diria etéreo e permanente (obrigado, Nelson Rodrigues), que poderia passar despercebido: em Portugal, somente entre conservadores e liberais, diziam os dois amigos, é que pessoas de esquerda podem falar sem temor de serem advertidos, censurados, proscritos e, claro, assassinados (moral e profissionalmente).

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Por uma dessas coincidências extraordinárias, da qual o cético certamente extrairia explicação científica e equivocada, li no dia seguinte um artigo do genial escritor português Miguel Esteves Cardoso. Dizia ele precisamente que “para haver democracia as expressões antidemocráticas têm de ser protegidas com o mesmo empenho com que são castigados os atos de violência” (Último volume, Assírio Alvim, 1996, p. 140).

Não queria com isto dizer endosso, concordância e até mesmo debilidade ingênua. Mas a afirmação conservadora perante o problema. Qual é? A de que inexiste democracia mais democrática do que a conservadora “no respeito pela diferença e pela excentricidade, no respeito pela pessoa e pela personalidade, na saudável ausência de axiomas, dogmas e metas, na preocupação ecológica de conservar equilíbrios estabelecidos, na defesa de um património coletivo que imprime continuidade e constância à barafunda comum – enfim, na maneira como liberta e procura conservar uma ordem política e social já longamente comprovada, humildemente protegendo a explosão coletiva e caótica de humanidade, dos desígnios meramente ideológicos ou individuais” (pp. 139-140).

Sabedor dos riscos e perigos dessa convivência com os que pretendem usar a democracia para suprimir as liberdades, o conservador consolida a sua posição como reação: aplicar de forma eficiente os instrumentos culturais e políticos disponíveis para neutralizar a atuação dos autoritários e totalitários de qualquer matriz ideológica que alimentam-se de utopias políticas.

Quem são eles?

Miguel Esteves Cardoso define, preciso como um trimmer: “para nós, conservadores, as pessoas que sonham com sociedades perfeitas e cidadãos perfeitos e que pensam em maneiras de atingi-las são muito mais parecidas com esquerdistas”. Hoje, acrescento eu, são mesmo quase todas esquerdistas.


Como nota de despedida, compartilho outros dois livros lidos aqui nesses dias em Lisboa: o primeiro, Coração, Cabeça e Estômago – Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado, de Camilo Castelo Branco (Obras de Camilo Castelo Branco, volume II, Editora Glaciar, 2016). O segundo, A Sibila, de Agustina Bessa-Luís (Guimarães Editores, 2009).
São livros para alimentar o espírito e a imaginação moral. Leiam, leiam.
Título e Texto: Bruno Garschagen, Gazeta do Povo, 24-6-2017 
Fotos: Divulgação/Visit Lisboa

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