Bruno Garschagen
Passeando por Lisboa, sede da
nossa antiga Corte, sinto cheiro da minha infância. As ruas, as pessoas, as
construções lembram-me um certo Brasil da década de 1980. Há nos portugueses
uma ingenuidade sincera, uma maneira singular de lidar com a vida e com o
outro, elementos que deixamos desaparecer do nosso senso comum.
Ajuda essa peculiaridade a
compreender por que tantos brasileiros, turistas ou imigrantes, ao reconhecerem
Portugal como a sua casa, ou a casa de um familiar querido, desabrocham em
elogios, apaixonam-se à primeira vista. E querem voltar a passeio ou nunca mais
daqui sair.
A oikophilia, o amor pelo lar
de que fala Roger Scruton, porque distinção humana, permite-nos reconhecer como
casa aquilo que nos é familiar, que nos desperta o senso de pertencimento e de
proteção contra os instintos destrutivos dos revolucionários.
***
Desde 2007, quando vim pela
primeira vez para residir, Portugal é o meu país. Portugal é o meu país
justamente porque sou brasileiro. E ser brasileiro significa reconhecer e
celebrar esse extraordinário capital cultural que nos foi legado pelos
portugueses. Se nós, brasileiros, somos portugueses dilatados pelo calor, como
escreveu Eça de Queiroz em 1872, partilhamos fidagalmente qualidades e senões.
Em muita medida, ainda somos “expansivamente” o que os portugueses são
“retrahidamente”.
***
Estive num jantar, na semana
passada, com um grupo de amigos em Lisboa. Um escrete estrelado, como diziam
antigamente os cronistas de futebol. Cada um deles bem-sucedido e influente em
seu ofício – literatura, jornalismo, mercado editorial, ensino universitário. A
política dominou a conversa, posto que o momento está para isto mesmo seja em
Portugal, no Brasil e no resto do mundo.
Ao fim do jantar, naquela
conversa de despedida que dura quase o tempo da conversa principal, dois amigos
(um de anos, outro de horas) levantaram um aspecto central, fundamental, diria
etéreo e permanente (obrigado, Nelson Rodrigues), que poderia passar
despercebido: em Portugal, somente entre conservadores e liberais, diziam os
dois amigos, é que pessoas de esquerda podem falar sem temor de serem
advertidos, censurados, proscritos e, claro, assassinados (moral e
profissionalmente).
***
Por uma dessas coincidências
extraordinárias, da qual o cético certamente extrairia explicação científica e
equivocada, li no dia seguinte um artigo do genial escritor português Miguel
Esteves Cardoso. Dizia ele precisamente que “para haver democracia as
expressões antidemocráticas têm de ser protegidas com o mesmo empenho com que
são castigados os atos de violência” (Último volume, Assírio Alvim,
1996, p. 140).
Não queria com isto dizer
endosso, concordância e até mesmo debilidade ingênua. Mas a afirmação
conservadora perante o problema. Qual é? A de que inexiste democracia mais
democrática do que a conservadora “no respeito pela diferença e pela
excentricidade, no respeito pela pessoa e pela personalidade, na saudável
ausência de axiomas, dogmas e metas, na preocupação ecológica de conservar
equilíbrios estabelecidos, na defesa de um património coletivo que imprime
continuidade e constância à barafunda comum – enfim, na maneira como liberta e procura
conservar uma ordem política e social já longamente comprovada, humildemente
protegendo a explosão coletiva e caótica de humanidade, dos desígnios meramente
ideológicos ou individuais” (pp. 139-140).
Sabedor dos riscos e perigos
dessa convivência com os que pretendem usar a democracia para suprimir as
liberdades, o conservador consolida a sua posição como reação: aplicar de forma
eficiente os instrumentos culturais e políticos disponíveis para neutralizar a
atuação dos autoritários e totalitários de qualquer matriz ideológica que
alimentam-se de utopias políticas.
Quem são eles?
Miguel Esteves Cardoso define,
preciso como um trimmer: “para nós, conservadores, as pessoas que sonham
com sociedades perfeitas e cidadãos perfeitos e que pensam em maneiras de
atingi-las são muito mais parecidas com esquerdistas”. Hoje, acrescento eu, são
mesmo quase todas esquerdistas.
Como nota de despedida,
compartilho outros dois livros lidos aqui nesses dias em Lisboa: o primeiro, Coração,
Cabeça e Estômago – Aventuras de Basílio Fernandes Enxertado, de
Camilo Castelo Branco (Obras de Camilo Castelo Branco, volume II,
Editora Glaciar, 2016). O segundo, A Sibila, de Agustina Bessa-Luís
(Guimarães Editores, 2009).
São livros para alimentar o
espírito e a imaginação moral. Leiam, leiam.
Título e Texto: Bruno Garschagen, Gazeta do Povo, 24-6-2017
Fotos: Divulgação/Visit Lisboa
Muito bom!
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