Alexandre Homem Cristo
A quem se entrega um dossier que se
pretende inconclusivo? Ao parlamento, claro – um cemitério de reformas
políticas e um palco de desentendimentos que nunca desilude nos espetáculos mediáticos.
O Estado ficou aos papéis no
incêndio de Pedrógão Grande. Mas a classe política nem por isso. Desde a
primeira hora da tragédia, o governo e a Presidência fizeram os possíveis para
sacudir a pressão e abafar a discussão sobre as origens do incêndio, os erros
operacionais e a descoordenação política. A versão oficial, pela boca de
Marcelo, saiu definitiva: não havia nada mais que pudesse ter sido feito. Agora
que os jornais desenterraram factos que contrariam essa versão, a história
mudou. Afinal, Marcelo exige esclarecimentos. Afinal António Costa quer
respostas cabais. Ainda bem. Mas que fique registado: a primeira intuição foi
afastarem-se das responsabilidades e soltar informação que, escrutinada pela
imprensa, se provou errada ou, pelo menos, muito duvidosa – sobre como tudo
começou, sobre a coordenação dos serviços, sobre meios de combate ao incêndio.
Nada de inusual. O instinto de
sobrevivência faz parte da vida dos partidos. E perceber isto é fundamental
para entender o que aí vem quando se fala de apuramento dos factos sobre
Pedrógão Grande: quanto mais esse apuramento depender dos partidos, menor será
a independência das conclusões e menor será o esclarecimento público. É por
isso que, entregue o processo ao parlamento, tudo indica que será pouco mais do
que fomentar a ilusão de escrutínio. Afinal, a quem se entrega um dossier que
se pretende inconclusivo? Ao parlamento, claro – um cemitério de reformas
políticas e um palco de desentendimentos que nunca desilude na disponibilidade
para espetáculos mediáticos.
A farsa já começou, sob
coordenação da Presidência da República, que exige novas leis até às férias e
pelos vistos determina o calendário legislativo da Assembleia da República
(justiça seja feita a Passos Coelho, que se tem oposto às precipitações de
Marcelo). Esta semana, os deputados despacharam numa tarde o que há dois meses
não se resolvia. Será que, legislando assim, os interesses dos cidadãos ficarão
melhor protegidos? Parece óbvio que não. Mas os dos deputados ficarão: votadas
e aprovadas as leis, ninguém os poderá acusar de não terem feito do tema uma
prioridade. As aparências são tudo.
A farsa, tudo indica,
continuará na constituição de uma comissão independente a partir do parlamento.
Sim, será composta por peritos – mas peritos escolhidos por partidos que têm
interesses na matéria. Achar-se que uma comissão independente pode nascer da
iniciativa dos partidos, que têm interesse em diluir as suas responsabilidades
ou favorecer clientelas no sector da agricultura, é como acreditar que as vacas
voam. Por exemplo, ainda as cinzas pesavam no ar e já Tiago Barbosa Ribeiro
(deputado PS) punha as responsabilidades em Assunção Cristas, enquanto
ex-ministra da Agricultura. É nesta gente que somos forçados a confiar para
conduzir o processo de apuramento da verdade?
O pior da tragédia de Pedrógão
Grande durou dois dias. Mas os eventos que se seguiram também não podem ser
esquecidos: eles mostram a face de um regime esgotado, com políticos ansiosos
por controlar o escrutínio público. Já se sabe como é: tudo passa e a história
acabará daqui a umas semanas, quando Pedrógão Grande sair das manchetes – mesmo
as mais terríveis tragédias têm um prazo mediático. É nessa impaciência popular
que se refugia o regime, que sabe que para sobreviver basta esperar que a
tempestade passe e cuidar das aparências. Sim, abriu o período de apuramento de
responsabilidades. Mas, olhando para esta última semana, só os ingénuos poderão
acreditar que, quando os factos se revelarem incómodos, alguma coisa se
apurará.
Título e Texto: Alexandre Homem Cristo, Observador,
26-6-2017
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