José Manuel Fernandes
A obsessão do Bloco com o eucalipto não é
uma preocupação com a floresta, é só preconceito e ignorância. Mais: sem o
contributo do eucalipto dificilmente teremos recursos para recuperar o mundo
rural.
Ainda antes de escrever a
primeira linha deste texto já sei do que vou ser acusado – até já estou a ver
as frases que encherão as caixas de comentários, onde serei de imediato
condenado como um miserável avençado das empresas de celuloses. É isso que dita
a habitual arrogância moral da esquerda e, sobretudo, da extrema-esquerda,
aquela que dispara antes de pensar e insulta em vez de debater.
E sei muito bem porque é que
isso vai acontecer: porque vou contrariar a ideia feita de que os grandes males
da floresta portuguesa são todos obra da sua “eucaliptização”. Depois da
tragédia de Pedrógão Grande, esclarece o sumo sacerdote e eterno ideólogo do
Bloco, o prioritário não é determinar como foi possível um tal colapso do
Estado na sua primeira missão de proteção dos cidadãos, nem apurar
responsabilidades políticas, nem sequer tentar perceber, no terreno, como
possível que o fogo se propagasse tão depressa nalguns terrenos ao mesmo tempo
que deixava, aqui e além, umas manchas verdes. Para Francisco Louçã a “agenda do rescaldo” nunca passa por pedir contas a quem nos governa, antes por
condenar quem está na oposição e, sobretudo, por “ter cuidado” com “as empresas
do eucalipto” que estarão “a mover-se para proteger o seu baú”.
Como? Na cabeça conspirativa
do novel conselheiro de Estado essas empresas irão aproveitar “a necessidade de
posse administrativa dos terrenos abandonados para um movimento de concentração
da propriedade, à espera de um novo governo que lhes favoreça a
eucaliptização”. Por isso, acrescenta, é preciso, pois, ter cuidado com os
“eucaliptocratas”, razão pela qual não há dirigente, deputado ou bota-faladura
do Bloco que não fale do eucalipto mesmo sem saber daquilo que fala.
Infelizmente fazem-no em
terreno fértil: primeiro, porque as empresas de celulose são ricas e dão lucro,
e isso é pecado em Portugal; depois porque o eucalipto tem, sempre teve, muito
má imprensa – às vezes com razão, outras sem ela. Quando a Catarina ou uma das
manas Mortágua investe contra a chamada eucaliptolândia, os jornalistas que
seguram os microfones quase acenam com as cabeças e depressa se esquecem de
confrontar a sua doçura de hoje (quando morreram 64 pessoas num incêndio
florestal) com a lendária agressividade dos tempos em que até as suas unhas
encravadas eram culpa de Passos Coelho.
Infelizmente, acrescento
ainda, porque o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, também cede à
demagogia e ainda agora prometeu no Parlamento que “não haverá mais um único
hectare de eucalipto em Portugal”.
Mas adiante, que o que conta é
que o Bloco cavalga um preconceito – que é também o preconceito de muito
renomado comentador, acrescente-se – e fala sem saber, o que não seria grave se
a sua nova cruzada não pudesse ter como consequência uma floresta ainda mais
miserável do que aquela que temos. Por isso, muito devagarinho e da forma mais
didática possível, deixem-me explicar porque é que investir contra os alegados
“eucaliptocratas” não é tão inocente e pueril como investir contra os moinhos
de vento do Quixote. Bem pelo contrário.
Comecemos pelo princípio: se
todos estamos de acordo que na origem da tragédia de Pedrógão Grande está uma
floresta mal ordenada e maltratada num território desertificado, a questão que
temos de colocar é dupla: como contrariar a desertificação e como tornar a
floresta uma fonte de riqueza capaz de ajudar à fixação de populações que a
cuidem e tratem.
A resposta dos ignorantes é
que terras como as de Pedrógão Grande estão desertificadas porque foram
abandonadas ao eucalipto (alguns, menos cegos, talvez acrescentem que também
foram abandonadas ao pinheiro-bravo), mas essa é uma resposta errada. Não só o
abandono começou muito antes da chegada das grandes plantações de eucalipto,
como para muitos do que ainda aí residem em meio rural o rendimento que tiram
do eucalipto é dos poucos que lhes sobram. Tal como é o rendimento do
pinheiro-bravo, de que vendem a madeira e de que ainda exploram a resina (cada
vez menos).
E porque é que as pessoas
plantam eucaliptos? Afinal nos três concelhos inicialmente afetados não há
plantações das empresas de celulose (há uma quinta da Altri na região, mas é já
no concelho de Góis). Há várias razões. Primeiro, o retorno do investimento no
eucalipto é mais rápido: em oito a dez anos é possível cortar e vender as
árvores. O rendimento é mais baixo do que o do pinheiro, mas quando estamos em
áreas onde as florestas ardem de 12 em 12 ou de 15 em 15 anos (o tempo
necessário para se acumular o material combustível que as transformam em barris
de pólvora), o investimento também é mais seguro: é cada vez mais raro ver um
pinhal crescer até aos 25 anos, idade boa para um corte.
Por outras palavras: não é
necessário que os “abutres das celuloses” andem a rondar para as populações
plantarem eucaliptos, às vezes a par com pinheiros, às vezes em todos os
hectares disponíveis. Se quisermos que mudem de comportamento temos de
encontrar os incentivos corretos, mas não se imagine que o Estado seria melhor
proprietário e gestor, pois não é raro encontrarmos terremos públicos ao
abandono (bem pelo contrário).
Mais: se conhecermos o terreno
saberemos que as áreas melhor tratadas são, por regra, as que são geridas pelas
empresas de celuloses. E com resultados, pois raramente ardem, quando ardem é
sobretudo porque sofrem o impacto de fogos vindos de terrenos contíguos e,
mesmo assim, registam uma relação área plantada/área ardida de 0,3%, cerca de
dez vezes mais baixa à registada na média nacional se considerarmos apenas os
povoamentos florestais.
Isto acontece porque nessas
florestas “das celuloses” (e apenas um quinto das plantações de eucalipto
pertencem diretamente a essas empresas) se trabalha no Inverno e na Primavera
para prevenir os fogos de Verão, porque há zonas de descontinuidade e porque há
corpos profissionais de bombeiros que conhecem o terreno e sabem exatamente
onde podem parar um fogo. Ainda agora neste grande incêndio vimos os bombeiros
à espera do fogo nas estradas ou na proteção das aldeias, enquanto as equipas
da única empresa afetada estavam na floresta, curiosamente apoiados pelos
bombeiros galegos que estavam encostados e sem fazer nada porque, como disse a
ministra, não havia missão para lhes entregar. Resultado: dos 600 hectares de
plantação da Altri em Góis (400 de eucalipto, 200 de pinheiro), apenas arderam
14.
E só mais uma nota: quem já
esteve no terreno depois do incêndio notou (e eu já vi as fotografias) que
entre as raras manchas verdes que resistiram numa paisagem totalmente negra
estão algumas plantações recentes de eucaliptos. Estranho? Não se pensarmos que
nesses terrenos há menos combustível acumulado e houve cuidado para que as
árvores novos pudessem crescer.
Servem estes exemplos apenas
para sublinhar um ponto: nunca conseguiremos reformar, reordenar e tratar a
floresta portuguesa se quisermos destruir, ou mesmo apenas diabolizar, a única
fileira florestal integrada e a que gera mais dinheiro e recursos. Ou seja,
necessitamos do eucalipto e das suas receitas não apenas para que não
desapareça totalmente a economia do interior despovoado, como necessitamos dos
recursos que a exploração do eucalipto pode gerar para investir noutro tipo de
floresta.
E escrevo tudo isto sem
nenhuma espécie de simpatia pelo eucalipto, espécie que importámos da Austrália
e me é estranha – escrevo-o antes na convicção de que sem esses recursos o que
está abandonado mais abandonado ficará, e que em vez de eucaliptos e pinheiros
veremos as nossas serras cobertas pela pior das espécies invasoras, as acácias,
que não só alimentam o fogo como se alimentam dele.
Claro que tudo isto faz imensa
confusão ao Bloco e deve fazer ainda mais confusão ao dr. Louçã, pois significa
envolver empresas, e empresas grandes, e empresas que exportam, e empresas que
dão lucro e criam empregos. Porém se escutarmos as poucas vozes sensatas que
ainda se vão ouvindo no meio de toda esta vozearia até encontramos algumas
sugestões inteligentes sobre como isso poderia ser feito.
Foi isso mesmo que encontrei num post de um especialista, Henrique Pereira dos Santos,
em que este cita um responsável florestal da Altri, o holandês Henk Feith, que
alvitra algo que me pareceu bastante sensato: a criação de “créditos de
biodiversidade”. A sua ideia é que o plantio e exploração de espécies
“comerciais” – como o eucalipto, mas também como o pinheiro-bravo, o
pinheiro-manso e até o sobreiro – suportaria o plantio de espécies nativas “não
comerciais”. Seria, explica ele, “um pouco como o mercado de carbono, mas para
floresta nativa. Uma fábrica que emite CO2 tem de comprar créditos de carbono;
uma floresta comercial pode ter de comprar créditos de floresta de conservação.
Quem planta 10 hectares de floresta de produção tem de ter ou financiar um
hectare de floresta de conservação. Assim, o investimento florestal impulsiona
a conservação da floresta. Em vez de proibir, promove-se o equilíbrio.”
É viável? Não vejo porque não.
E o que sei é que o proibicionismo cego dos “eucaliptofobos” não resolve
problema nenhum, antes se arrisca a agravar ainda mais os que já temos. Escrevo
sobre fogos e floresta há mais de 30 anos, cheguei a percorrer o país com a
intenção de demonstrar os males do eucalipto (uma das minhas derradeiras
investigações para o Expresso, no longínquo ano de 1989), nunca recebi um
tostão de qualquer empresa de celuloses (esta deixo aqui só para os que estão a
espumar desde o primeiro parágrafo), mas prefiro o conhecimento ao preconceito.
E, até porque não ando à cata de votos fáceis, não entro em demagogias. Não
posso dizer o mesmo das carinhas larocas do Bloco, e até peço desculpa a
Jerónimo de Sousa por assim o citar.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
28-6-2017
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