Portugal não cede à baixa política, leia-se
permite a impunidade geral. Portugal, repete-se, é uma nação muito forte,
leia-se um recreio de oportunistas, desnorteados ao primeiro assomo da
realidade.
Anteontem, o “Jornal de
Notícias” recordava o “‘inferno’ idêntico ao de Pedrógão”, que “reduziu a
cinzas cidade no Canadá”. Aconteceu em 2016, queimou 590 mil hectares e obrigou
a evacuar Fort McMurray, uma cidade de 80 mil habitantes. O “JN” diz, provavelmente
com razão, que “ninguém poderia prever” aquilo. O que o “JN” não diz é o número
total de mortos. Digo eu: zero.
Ao invés dos abundantes
especialistas em floresta que despontam por cá a cada Verão (ainda assim
insuficientes para impedir a floresta de arder com empenho), acredito existirem
fogos impossíveis de prever e quase impossíveis de controlar. Fortuita ou
provocada, por árvore delinquente ou pirómano de aldeia, a destruição leva
sempre vantagem. Embora Portugal queime de forma rara em regularidade e
dimensão, às vezes há catástrofes devastadoras até em paragens desenvolvidas e
organizadas e demograficamente equilibradas. Às vezes, a resignação é o único
remédio.
Pedrógão Grande, porém, é um
caso diferente. Aquele não foi um simples incêndio. Foi, desde que há registos
fiáveis, um dos incêndios florestais mais mortíferos da História, portuguesa,
europeia ou mundial. Na Califórnia, onde as chamas costumam arrasar territórios
imensos e lugarejos inteiros, o recorde de fatalidades são 29, em 1933, e a
regra duas ou três. Sessenta e quatro vidas, contas provisórias e para cúmulo
numa área pouquíssimo povoada, não é um dado comum. É um massacre evitável. E é
um crime fingir que não.
Na quarta-feira, o exato dia
em que a nomenclatura do regime compareceu pesarosa ao funeral de um bombeiro,
o Presidente da República declarou que a “unidade nacional” perante a tragédia
“mostra bem como somos uma nação antiga e uma nação muito forte”. À superfície,
tais palavras são apenas um deprimente vazio. Sucede tratar-se do exato PR que,
entre abraços sortidos, ocupou os minutos iniciais que os noticiários dedicaram
ao incêndio para garantir que fora feito tudo o que se podia fazer. Pelo meio,
o país tomou conhecimento de dezenas de mortos e da radical desorientação ou
impotência das autoridades. E o país viu-se atacado por uma operação, talvez
inédita, de manipulação informativa liderada pelo governo e patrocinada por boa
parte dos “media”. O país que quis perceber percebeu que a “nação muito forte”
é uma coisinha débil, e que a “unidade nacional” é uma estratégia repugnante
para, em nome das vítimas, socorrer os suspeitos. Note-se que não acuso
ninguém. Não é preciso: os esforços para suprimir culpas são a sua maior
admissão.
A “incompetência do Governo
não pode encontrar justificação na meteorologia”, berrava o BE em 2015, face a
28 mil hectares queimados e, suponho, morto nenhum. Agora, a atriz Catarina
Martins implora no Twitter: “Que venha a chuva. Bom dia”. A brandura é
partilhada pelo PCP, o qual, salvo por um patético “pedido de esclarecimento”,
refugiou-se no luto. “Luto”, aqui, é código para “ganhar tempo”. Não surpreende
a cumplicidade dos partidos comunistas no arranjo. Não surpreendem os esforços
do PS na elaboração do arranjo. Não surpreende o aval do PR ao arranjo, visto
que já só os ceguinhos não veem a verdadeira função do prof. Marcelo. E não
surpreende a ajuda das televisões e dos jornais à eficácia do arranjo.
Numa proeza sem grandes
precedentes na cronologia do servilismo ocidental, um diário de rever…, perdão,
referência, mobilizou todo o corpo de colunistas para atribuir Pedrógão Grande
à desdita, à conspiração dos elementos e – segurem-se – ao “fogo que voa”. É um
mero, mesmo que particularmente asqueroso, exemplo. Descontadas as excepções, o
tom das “notícias” não tem fugido à produção de prosa “poética” e sentimento.
Em contrapartida, foge a oito pés na hora de escrutinar o poder. Editoriais
espanhóis decretam o fim da carreira do primeiro-ministro, mas ignoram que o
repórter português médio permite que o excelentíssimo espécime coloque as
perguntas que quer em lugar de responder às que não quer. Mal habituados,
jornalistas a sério não concebem que o jornalismo a brincar colabore com
estadistas de trazer por casa em sinistras encenações de compaixão. Aliás, o
jornalismo a brincar também não concebe o seu oposto: um colunista do “El
Mundo”, crítico das nossas desgraças, anda a ser investigado pelos colegas de
cá, abismados com o desplante.
Em nações menos exóticas,
haveria quem expusesse o talento do dr. Costa, de certos amigos do dr. Costa e
de outras personalidades admiráveis no “investimento” de milhões em
comunicações que não comunicam e em helicópteros que não descolam. E quem fosse
direta ou indiretamente responsabilizado pelas famílias encurraladas e
carbonizadas em plena estrada, que se apelida “da morte” para efeito
“dramático”. E quem denunciasse as mentiras cometidas por figuras ditas de
relevo a partir do ponto em que a quantidade de cadáveres era demasiada para
continuar a adiar a divulgação. E quem, acima dos estropícios que entopem a
Administração Interna, explicasse em língua de gente a recusa dos bombeiros
galegos. E quem lembrasse que é tão fácil quanto inútil ganhar campeonatos de
futebol, festivais de cantigas e incumbências na ONU: difícil é ganhar vergonha
na cara.
Nações menos infantis não
descansariam até varrer os demagogos que celebram glórias imaginárias e fintam
as desgraças autênticas. Portugal, não. Portugal respeita os mortos, leia-se
espera que os vivos não perturbem a “estabilidade”. Portugal observa
prioridades, leia-se deixa arrefecer o assunto. Portugal não cede à baixa
política, leia-se permite a impunidade geral. Portugal está unido, leia-se
criou-se um ambiente hostil a questões desagradáveis. Portugal, repete-se, é
uma nação muito forte, leia-se um recreio de oportunistas, desnorteados ao
primeiro assomo da realidade.
Sobra uma lição, que a “nação
muito antiga” teima em não aprender. Em Pedrógão Grande, o Estado falhou no
solitário papel que lhe devia caber: proteger fisicamente os cidadãos. Logo o
Estado, de que os portugueses esperam tudo e, no momento que importa, obtêm
nada. Não é coincidência.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
24-6-2017
Relacionados:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-