Rui Ramos
Dizem-nos que a demissão seria “o mais
fácil”. Mas o governo já fez “o mais fácil”: na prática, já se demitiu, perante
o conjunto de organismos e de interesses a que, por hábito, chamamos
"Estado".
Perante a desordem
administrativa que deixou 64 mortos e mais de 200 feridos no Pedrogão-Grande, o
governo fez duas coisas. Primeiro, invadiu o terreno, com coletes refletores e
olhos humedecidos, confiado em que este seria mais um problema que se resolveria
com encenações de proximidade e afeto. A prova de velocidade da Ministra da
Administração Interna para aparecer ao lado do Presidente da República ficou a
simbolizar essa primeira fase, em que o que se tratava era de ficar bem na
fotografia, segundo a manha que o furacão Katrina ensinou às elites políticas
ocidentais em 2005 (apareçam e ponham caras tristes).
Mas a certa altura, o governo
percebeu que a comédia dos abraços não bastaria desta vez para diluir a
perplexidade e a indignação perante um Estado incapaz de desempenhar as suas
funções mais básicas. Mudou então de táctica, e começou a fazer perguntas,
muitas perguntas, às mais variadas entidades. As respostas, chegadas ao longo
dos dias, foram frequentemente contraditórias entre si. O caso do SIRESP é
significativo: segundo a Proteção Civil, falhou; segundo a empresa
concessionária, não falhou. E segundo o governo? Segundo o governo, não se
sabe. Os ministros não dão respostas, só fazem perguntas. É uma situação
curiosa, em que o governo não se comporta como um órgão de decisão e de
liderança, responsável em última instância, mas como uma espécie de comissão
arbitral, neutra entre as várias partes. Quando a oposição, na Assembleia da
República, propôs um inquérito independente, o governo aderiu logo. Se amanhã a
Assembleia Geral da ONU sugerisse o envio de capacetes azuis, fica-se com a
impressão que o governo também apoiaria. Tudo, menos assumir responsabilidades.
No meio disto, explicaram-nos
que a demissão seria “o mais fácil”. Acontece que o governo, à sua maneira, já
fez “o mais fácil”: na prática, já se demitiu, perante o conjunto de organismos
e de grupos de interesse a que, por hábito e à falta de melhor termo, chamamos
“Estado”. Em Portugal, o poder público está capturado por uma massa indefinida
de interesses corporativos e privados, que submetem os serviços às suas
conveniências. O atual governo é o menos capaz para enfrentar e corrigir essa
desordem.
Em primeiro lugar, porque tem
à sua frente alguém que os portugueses, em 2015, rejeitaram claramente quando o
seu partido o propôs como “candidato a primeiro-ministro”. A derrota deixou
António Costa dependente de toda a espécie de boas vontades para chegar ao
poder, a começar pela dos seus parceiros parlamentares, que precisamente fazem
lobby por alguns dos maiores grupos profissionais e corporativos instalados no
Estado. Manter esses e outros grupos satisfeitos é a chave da sua
sobrevivência.
Em segundo lugar, porque este
governo é, no fundo, o regresso dos indivíduos e das equipas que, sob António
Guterres e depois sob José Sócrates, governaram o país durante a maior parte
das últimas décadas e criaram e promoveram os interesses anichados em todo o
lado, da banca às PPP, como é o caso da concessionária do SIRESP (António Costa
é, precisamente, o homem do SIRESP). Como pode o criador, sem se negar,
destruir as criaturas?
Este governo pouco mais é do
que uma comissão de gestão da massa falida de vinte anos de regime, que a
política monetária do BCE e o acaso feliz do turismo vão, por enquanto,
mantendo à tona. Por isso, como já foi notado, só parece funcionar quando as
notícias são “positivas” e há coisas para distribuir. Aos primeiros reveses da
sorte, ei-lo a fazer angustiados testes de popularidade. Enfim, ainda não
sabemos quando isto vai acabar, mas já sabemos como vai acabar.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
30-6-2017
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“Em primeiro lugar, porque tem à sua frente alguém que os portugueses, em 2015, rejeitaram claramente quando o seu partido o propôs como ‘candidato a primeiro-ministro’.“
ResponderExcluirMas então como explicar os 60% de ‘popularidade’?