Rui Ramos
Ao fim de uma semana, tivemos desculpas do
líder da oposição por um comentário, mas nem uma palavra de contrição do
governo pelo descontrole que matou 64 pessoas e deixou mais de 200 feridas.
O incêndio do Pedrogão Grande
foi um dos fogos florestais em que mais pessoas perderam a vida nos últimos cem
anos em todo o mundo. O espetáculo ignóbil do colapso do Estado no exercício
das suas funções mais básicas espantou quem pôde seguir o noticiário:
imprevidência, abandono das populações, descoordenação, informações
contraditórias. Mas no meio do caos, enquanto os mortos e os feridos se
acumulavam, o que inquietava o jornalismo e as redes sociais que geralmente
zelam pelos interesses de António Costa? Isto: a identidade do autor de um
artigo sobre Portugal no El Mundo. A pressão (vinda de Portugal) sobre
os editores do diário espanhol terá sido maior do que quando tratam de temas
irritantes em Espanha e nas Américas, como a Venezuela chavista. Ficámos assim
com uma ideia da máquina de que o atual governo de Lisboa dispõe para
“afeiçoar” a comunicação social.
Que fez El Mundo?
Apenas isto: especulou sobre as consequências políticas da catástrofe do
Pedrógão. Acontece, porém, que El Mundo não refletia o debate
público em Portugal. Nenhum partido ou personalidade influente exigiu a
demissão de um ministro, nem sequer de um secretário de Estado, quanto mais do
governo. O presidente da república, segundo depois terá feito constar, repetiu
fielmente o que o governo lhe disse. A oposição respeitou o luto. O PCP e o BE
tiraram, que me lembre, as primeiras férias desde 1974: foi como se não
existissem. Não houve, como em Londres depois do incêndio da Grenfell Tower,
nenhum “day of rage”. As televisões faziam desfilar “especialistas” a repetir
muito disciplinadamente o que dizem todos os anos.
O que aterrorizou então o
clube de fãs de António Costa? Não foi a perspectiva de uma improvável
insurreição à latino-americana, mas outra coisa: o perigo de acabar o mito que
tem sido a força de Costa. Desde o princípio, que António Costa foi apresentado
aos portugueses fundamentalmente como um homem de sorte e de habilidade. Perdeu
as eleições, mas o PCP e o BE deram-lhe a mão, e chegou a primeiro-ministro.
Passos Coelho deixou a economia a crescer e o desemprego a diminuir, mas é
Costa quem está a registar os resultados. Que mais provas podia haver da sua
boa estrela? Napoleão, como é sabido, preferiu sempre generais menos capazes,
mas com sorte, a generais muito competentes, mas azarados. Costa seria talvez
um bom general para Napoleão, e era disso que, segundo a oligarquia, o país
precisava: um governante a quem tudo corresse bem, um “optimista”.
É óbvio que a oligarquia sabe
que nada está assim tão bem. De facto, os oligarcas estão pessimistas. Tão
pessimistas, que já só acreditam na sorte e no “pensamento positivo”. Mas a
certa altura pareceu mesmo haver sorte: era o dinheiro barato do BCE, era o
turismo, era o campeonato da Europa, era o festival da Eurovisão — tudo falava
de uma fortuna que não se cansava de sorrir a António Costa. Até ao Pedrógão
Grande. Na semana passada, o encanto quebrou-se. Afinal, as coisas também
correm mal a António Costa. Pior: a sua encenação de sucesso rasgou-se, para
revelar a vulnerabilidade de um país onde o Estado, gastando o equivalente de
metade do PIB, nem assim é capaz de poupar os cidadãos a um massacre como o do
Pedrogão.
Ontem, porém, houve luz na
escuridão. O provedor da Misericórdia de Pedrogão Grande induziu Passos Coelho
num lapso, de que o líder do PSD decidiu pedir desculpa. Foi a alegria do
costismo. Era a sorte outra vez. Mas talvez o sarcasmo do regime tenha desta
vez ficado demasiado patente: é que tivemos desculpas do líder da oposição por
um pequeno comentário, mas nem uma palavra de contrição do governo pela
incompetência e descontrole que mataram 64 pessoas e deixaram mais de 200
feridas.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador,
27-6-2017
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