Henrique Pereira dos Santos
Hesitei em escrever este post,
por respeito pelas vítimas e pelo risco de ser entendido como a utilização da
morte de terceiros para obter ganho de causa.
Ou melhor, ontem à noite,
quando me deitei, não sabendo que havia mortos nos fogos que estão a ocorrer,
tinha planeado escrever hoje de manhã um post sobre a responsabilidade moral
nas tragédias que ocorram nos incêndios de Verão.
Não porque seja possível
evitar todas as tragédias, mas porque estas tragédias, previstas repetidamente
por quem estuda seriamente a gestão do fogo, são enormemente potenciadas por
uma doutrina de gestão de fogo completamente absurda face ao que hoje se sabe.
Países como os Estados Unidos,
a Austrália e outros com territórios no lado Ocidental dos continentes, perto
do paralelo 40 (como é o nosso caso), há muito que abandonaram a ideia de
suprimir o fogo e insistem em políticas de gestão do fogo através da gestão dos
combustíveis.
Mesmo noutros contextos
geográficos, há a adoção de mudanças substanciais na doutrina, como fez
recentemente o Ontário (depois de um fogo, de características diferentes dos
nossos, de meio milhão de hectares).
O problema central é que em
Portugal parece ser admissível que um governante diga, como terá dito ontem o
secretário de estado da administração interna, que o comportamento do fogo não
se prevê, o que há é uns acadêmicos com umas teorias sobre isso.
Tal como parece ser normal o
presidente da liga dos bombeiros, que há anos que diz disparates sobre a gestão
do fogo (incluindo o clássico "nunca um fogo ficou por apagar"),
aparecer sistematicamente nestas situações a repetir a defesa de opções erradas
e que estão na base de tragédias como a desta noite.
E que o presidente da AIMMP
seja sistematicamente convidado para falar de fogos, com um discurso completamente
ignorante e absurdo sobre incendiários, sem qualquer ligação com a realidade
conhecida e estudada.
E que o presidente da Proteção
Civil diga que correu tudo bem num ano em que há um fogo de trinta mil
hectares, tendo como objetivos para o ano seguinte (2017) não ter perdas de
vidas.
E que qualquer presidente de
Câmara diga que não sabe como é possível o que está a acontecer, quando
qualquer curioso que estude o assunto com um mínimo de atenção, e recorrendo a
quem sabe do assunto, lhe explica em três tempos que em condições
meteorológicas extremas o seu concelho vai ser palco de uma tragédia, mas que
isso tem solução se se quiser empenhar nas políticas de gestão de combustíveis
a sério, em vez de fazer declarações patetas sobre as origens dos fogos.
Estes senhores são moralmente
responsáveis por transformar os bombeiros em carne para canhão, quer defendendo
e aplicando a doutrina do Portugal sem fogos, quer mantendo uma estúpida
oposição à profissionalização dos bombeiros e respectiva integração entre gestão
de combustíveis e combate.
Tal como declarações
totalmente irresponsáveis de acadêmicos respeitados, mas que nunca estudaram
ecologia e gestão do fogo, bem visíveis neste artigo de 2010 (refiro-me, naturalmente, às declarações
irresponsáveis de Helena Freitas, e não à sensatez habitual de Paulo Fernandes,
que infelizmente é menos ouvido no país, e pelos decisores, do que seria bom
para nós), ajudam a suportar a ideia estúpida de que o fogo é um inimigo que
pode ser vencido, em vez de olhar para o fogo como um elemento natural que
precisa de ser gerido de forma economicamente sustentável, em que o Estado se
empenha em suprimir as falhas de mercado de um sector com graves problemas de
competitividade na maior parte do território.
Por respeito e em memória das
vítimas decidi, pois, escrever este post, dizendo que o fogo é previsível,
estas tragédias são uma questão de tempo até se repetirem se mantivermos a
doutrina do "Portugal sem fogos" e se insistirmos em assentar a
gestão do problema em corpos de voluntários sem qualquer ligação com a
prevenção estrutural feita no Inverno.
Nada me move contra os corpos
de voluntários, são muito úteis e, provavelmente, imprescindíveis, mas precisam
de uma estrutura profissional que conheça o território, crie e conheça
oportunidades para parar os fogos onde podem ser parados e que enquadre
devidamente a generosidade dos voluntários.
Já chega de pura
irresponsabilidade e de um discurso obscurantista que desvaloriza o
conhecimento existente e a sua aplicação em contexto real.
Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas,
18-6-2017
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