“Si entre no
haber sido y ser
hubiera el hombre elegido,
claro es que hubiera escogido
el no poder escoger”
hubiera el hombre elegido,
claro es que hubiera escogido
el no poder escoger”
(Ramón de Campoamor,
poeta dos extremo-centristas)
Só hoje tive tempo de ler com
calma o artigo do cientista político Gustavo Müller publicado em O
Globo há pouco mais de um mês sob o título “A angústia dos moderados”. À época alertado por leitores
de que o autor fazia menção ao meu A Corrupção da Inteligência,
reservara-o para mais tarde, após uma rápida passada de olhos. Julgo pertinente
respondê-lo agora, não por ter sido nominalmente citado, mas por distinguir na
argumentação do autor um sintoma típico das patologias intelectuais e de
linguagem que afetam nossa classe falante contemporânea.
A fim de nos apresentar seu
arrazoado em favor da “moderação” política, o articulista refere-se
criticamente a Jessé de Souza, intelectual orgânico do PT, cujo livro A
Elite do Atraso seria “um retrato do extremismo que há muito ocupa o
debate político e o debate intelectual”. Como pretenso representante do extremo
oposto no espectro político, também o meu livro (do qual o articulista confessa
ter lido apenas as primeiras páginas) é dito compor o mesmo retrato.
Para qualquer leitor
minimamente habituado a debates públicos, e dotado de elementar honestidade
intelectual, chama logo a atenção o fato de que os conceitos centrais do
artigo, extremismo e moderação, não são claramente
definidos ou identificados em parte alguma. Sem informar os leitores sobre
critérios de aferição, o autor tampouco lhes indica o que há de extremista
nas poucas páginas (terão sido duas? Cinco? Dez?) que leu do meu livro. A falta
de definição conceitual é tanto mais grave quanto mais absolutizados os
referidos conceitos surgem no texto. Müller parece nem desconfiar
que, em se tratando de política, essas palavras só podem ter valor relativo, a
depender da perspectiva própria de quem avalia. Indicam qualidades sem valor
substantivo intrínseco, e que só se esclarecem, pois, em função daquilo ou
daquele a que se aplicam. Deveria ser óbvio, mas o “centro” de uns bem pode ser
o “extremo” de outros, não havendo, nessa seara, posição panótica de onde tudo
ver sem ser visto.
Nem só de falta de definição
padece o artigo, contudo. Nele, o leitor encontrará também definições erradas.
Em sua busca pela moderação em política, o articulista sugere ter como
parâmetro aqueles que, nos EUA, poderiam ser identificados como “liberais” e,
na Europa, como “socialdemocratas”. Por ora, não entrarei aqui no mérito da socialdemocracia
europeia. Já é triste o bastante que um cientista político brasileiro não
saiba o sentido que nos EUA se atribui ao termo liberal, um
sinônimo de “esquerdista”, amplo o bastante para comportar toda série de
gradações, incluindo as versões ideologicamente mais radicais. “Liberals”,
por exemplo, é como são chamados os Social Justice Warriors (“guerreiros
da justiça social”), grupos de ativistas revolucionários que, sob a bandeira
das políticas identitárias, e brandindo símbolos socialistas e anarquistas,
agem com extrema violência contra desafetos políticos. O que pode haver aí de
“moderado”, no sentido auto lisonjeiro e água-com-açúcar que o autor confere à
palavra?
Mas a imprecisão conceitual
não surpreende quando, na sequência do texto, fica claro que Müller não está
falando de realidade objetiva alguma, senão apenas de si mesmo. Saímos então do
terreno da crítica literária, ou da análise política, e adentramos
perigosamente o da psicanálise. A criação artificial de dois polos
pretensamente simétricos e inversos (no caso, eu e Jessé de Souza) serve apenas
a este propósito: atender à vaidade pessoal e ao cabotinismo do articulista de O
Globo, que, por contraste, decide autoproclamar-se “moderado” – um queixoso
e incompreendido moderado em busca de espaço num mundo hostil povoado por
extremistas vários. Para que o leitor atine com o ridículo da coisa, basta
imaginar alguém que, sem ruborizar, e em alto e bom som, passasse a referir-se
publicamente a si mesmo como “lindo, tesão, bonito e gostosão”. Pois quem se
diz politicamente “moderado” diz isso e nada mais.
Com efeito, de tão
constrangedor, o artigo basta para granjear ao seu autor o rótulo de “gostosão
intelectual”, criado pelo filósofo Olavo de Carvalho para qualificar esse tipo tão
onipresente nas páginas dos nossos jornais e nas telas das nossas tevês, e cuja
fórmula do sucesso reside na singela técnica: “Invente duas crenças opostas
totalmente imaginárias e igualmente bocós, atribua-as a dois indivíduos quaisquer
(que provavelmente jamais ouviram falar delas) e declare-se superior a ambas.
Não é preciso explicá-las, nem discuti-las, nem provar que seus indigitados
porta-vozes têm mesmo algo a ver com elas. Apenas dê um nome a cada uma e
afirme, peremptoriamente, que são duas bobagens antagônicas, que você não cai
num engodo nem no outro, que está acima de correntes de opinião, ideologias,
estereótipos, o escambau”.
Dentro do gênero gostosão
intelectual, diria que o nosso apólogo da moderação pertence àquela espécie
que costumo chamar de meio-termista dogmático agudo – ou,
abreviadamente, MTDA. O paciente MTDA típico sofre de hiperformalismo e
dicotomofobia. Exposto, em algum momento da vida, a doses maciças de
pragmatismo, adquire uma incapacidade crônica de escapar do reino da
linguagem e das formas. Ao topar com uma oposição entre termos quaisquer, sua
repulsa é de tal ordem que não se preocupa em conhecer a substância e muito
menos a razão da oposição. Tudo o que enxerga é o fato em si de
haver uma oposição, e isso basta para fazê-lo reagir automaticamente, quase
alergicamente. Diante de toda oposição, para ele os termos serão sempre tidos
por equivalentes. No espírito do MTDA, uma dicotomia é abominável a
priori. Assim, se está diante de dois sujeitos em conflito, um dizendo que
2 + 2 = 4, e outro, que 2 + 2 = 5, o MTDA dirá de ambos que estão errados, e
que deve haver um meio-termo, um doce refúgio no centro entre os dois extremos.
O contato com uma oposição qualquer exaspera o MTDA ao ponto do desespero. Taquicárdico,
suando frio, tateará angustiadamente por um meio de escape, uma terceira via,
síntese mágica ou buraco de avestruz. De entrada no pronto-socorro, já
semiconsciente, quando o médico lhe pede que diga “trinta e três”, tudo o que
consegue balbuciar em resposta é: “dezesseis e meio”.
Em se tratando de política, a
coisa é mais grave. O MTDA é herdeiro inconsciente das utopias progressistas
que marcaram os séculos 18 e 19, e para as quais o progresso das técnicas e das
ciências levaria a uma substituição, tão necessária quanto irreversível, da
luta política pelo simples manejo racional da vida em sociedade. Desde o Curso
de Filosofia Positiva de Augusto Comte, passando pelo Anti-Dühring de
Friedrich Engels até chegar ao sonho liberal do “fim da história”, essas
utopias antipolíticas fincaram raízes no imaginário ocidental. Por jamais ter
feito a crítica dessa ideologia, que, mirando-se orgulhoso no espelho mágico,
ele confunde com a mais pura racionalidade supra ideológica, o MTDA desdenha
das rivalidades políticas, para ele um arcaísmo perturbador, reles obstáculo
rumo à paz perpétua. Com ar de entojo, qualifica-as pejorativamente de
“Fla-Flu”, mostrando com isso ignorar tudo de política (e não menos de esporte,
pois só um insensato trataria como coisa pouco justa o clássico futebolístico
que, na imortal definição de Nélson Rodrigues, “começou 40 minutos antes do
Nada”).
Portanto, MTDAs como Gustavo
Müller são tudo menos o que imaginam ser: equilibrados, racionais, sensatos e
realistas. Bem ao contrário, o que neles ressalta, a despeito de toda a pose
que, contraindo os músculos da face, tanto se esforçam por assumir, é um
fanatismo da moderação, um fetiche do meio-termo, um extremismo de centro. Daí
que, ao topar com o artigo do nosso angustiado extremo-centrista, não pude
deixar de lembrar aquilo que, com humor impagável, o escritor e roteirista
paulistano Alexandre Soares Silva disse certa vez sobre o mesmo tipo de
opinador, por ele descrito como alguém “tão satisfeito e confortável em não ter
de escolher um lado só em nenhuma disputa, que, ao ver na rua uma senhorinha
sendo chutada por dois adultos – sendo chutada rua abaixo como um novelinho de
lã –, seria capaz de dizer: ‘Não gosto desses sujeitos, mas não se enganem:
também nunca gostei dessa velhinha’”.
Título e Texto: Flávio Gordon, Gazeta do Povo, 18-4-2018
Título e Texto: Flávio Gordon, Gazeta do Povo, 18-4-2018
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