Alberto Gonçalves
Descontado o folclore, e à semelhança do
Natal, “Abril” é o que um homem quiser. E os homens que o fizeram, primeiro, e
os homens que o tomaram, em seguida, quiseram imensas e contraditórias coisas.
São diversas as razões que me impedem de desfilar a cada 25 de abril. A primeira é a aversão a manifestações públicas, para cúmulo coletivas. Se já é ridículo que uma pessoa se ache tão interessante a ponto de ter de expor os seus sentimentos ao resto da humanidade, é duplamente patético que se sinta obrigada a fazê-lo em bando. Um sujeito sozinho aos berros nos Aliados ou no Rossio ainda merece algum respeito (e a atenção do INEM). Acompanhado por milhares de ociosos idênticos, não merece respeito nenhum.
O segundo motivo é o absurdo
de comemorar datas. Incluindo a do meu aniversário, não conheço qualquer data
digna de festejos ou baderna. Desde o início dos tempos que, de acordo com os
paladares, diariamente acontecem tremores, bons, maus, terríveis, desmesurados,
ínfimos, incompreensíveis e polémicos. Se sairmos à rua a “assinalar” todos, acabaremos
exaustos, resfriados e com a taxa de produtividade do sindicalista médio. Além
disso, não haverá trânsito que resista.
O terceiro motivo pelo qual
não celebro “Abril” prende-se com o próprio “Abril”. Serei picuinhas, mas
causar-me-ia certa impressão passear em prol da democracia junto de criaturas
que sempre a combateram. Não querendo generalizar, o tradicional cortejo lisboeta
é das maiores concentrações de intolerantes que o país é capaz de agrupar. E a
toponímia é tão irónica quanto os propósitos: boa parte daquela gente “desce” a
Avenida da Liberdade em nome de um conceito que lhe é fundamentalmente
estranho. Por regra, os rostos reconhecíveis na romaria do 25/4 oscilam entre
fanáticos de proibições, na melhor das hipóteses, e devotos de totalitarismos,
na pior. Mesmo os que não idolatram abertamente tiranos célebres e obscuros
entretêm-se a conceber interditos e calar “blasfémias”. É peculiar, por
exemplo, que candidatos a censores se congratulem com o fim da censura. Ou que
prepotentes naturais recordem com rancor a prepotência alheia. No fundo, eles
descem a Liberdade porque não saberiam subi-la nem que tentassem.
Por estas e por outras (estas
chegavam), o meu contato com o 25 de abril de 2018 limitou-se às cerimónias
oficiais. Por diligência minha? Não endoideci. Sucede que o carro viera da
revisão e estava sintonizado numa estação de rádio, meio que sinceramente julgava
extinto. De repente, apanhei com a voz de uma senhora que evocava “o
secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres”. O meu impulso foi mudar
a engenhoca para um disco de John Lee Hooker em que me ando a viciar. Porém, o
humor retorcido que Deus me deu viu-se seduzido pelo descaramento de alguém
que, a fim de emitir uma trivialidade embaraçosa, cita a figura em causa. Citar
Gandhi ou Mandela é apenas aborrecido: citar o eng. Guterres revela um talento
burlesco que me transforma num ouvinte atento.
E atento ouvi a tal senhora
falar no “teto de vidro que impede as mulheres de chegarem aos lugares topo”,
na “nova realidade” em que vivemos “porque decidimos [ela e os amigos] pôr fim
à austeridade”, na dra. Pintasilgo (com um único “s”). A terminar, o cliché
apoteótico: “Cumprir a democracia e viver a liberdade é evitar fraturas e
conflitualidades entre jovens e idosos, entre empregados e desempregados, entre
patrões e trabalhadores, entre o interior e o litoral. Cumprir a Democracia e
viver a Liberdade é não deixar mais que nenhuma mulher seja agredida ou
assassinada numa relação de intimidade”.
A senhora, soube depois,
chama-se Elza (com “z”) Pais e é deputada do PS. Também soube depois que o
portentoso vazio dessa retórica uniu a quase totalidade dos discursos, com a
excepção do dr. Ferro Rodrigues. O presidente do parlamento conseguiu ir além
do vazio e aproveitou a oportunidade para defender os compinchas envolvidos em
trafulhices demográficas. No final, alguns parlamentares, de florzinha ao peito,
entoaram a “Grândola” fatal. Nas bancadas, os “capitães” abençoaram a
eucaristia. Se se pudesse morrer de ridículo, teríamos tido uma chacina.
Aqui chegado, para evitar
equívocos, esclareço não ser saudosista do salazarismo. Não aprecio regimes
controlados por nacionalistas rústicos, inimigos do comércio livre, da
propriedade privada, do direito à expressão, dos “desvios” à moral vigente e,
em suma, da possibilidade de o indivíduo decidir estrafegar o seu destino
conforme entender. Aliás, são esses os exatos motivos que me excluem da
habitual discussão em volta da propriedade de “Abril”. Ano após ano, a nossa
melancólica “direita” procura reivindicar uma herança de que a esquerda se
apoderou e da qual me excluo sem remorsos. Por mim, podem ficar com os cravos,
o “Zeca”, a gaivota, a aliança povo/MFA e restante folclore. Descontado o
folclore, e à semelhança do Natal, “Abril” é o que um homem quiser. E os homens
que o fizeram, primeiro, e os homens que o tomaram, em seguida, quiseram
imensas e contraditórias coisas. Um protesto corporativo. Um golpe de Estado.
Uma democracia à “europeia”. Um paraíso soviético. Um inferno cubano. Um
manicómio. Somados os pesos e os contrapesos, sobrou-nos o meio termo. Se nos
livrámos de trocar uma ditadura rançosa por uma ditadura sanguinária, não nos
livrámos da propensão para o atraso de vida que nos tolhe há séculos.
Quarenta e quatro anos
passados, estamos assim, dependentes, tolhidos, patriotas, tontos e entregues a
uma casta renovável e sortida de burgessos com manha, cuja solitária habilidade
é a de convencer-nos da justiça dos seus privilégios.
Celebrar isto? Vou ali e não
volto, como diria o secretário-geral das Nações Unidas.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Observador,
28-4-2018
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