Aparecido Raimundo de Souza
TUDO FOI
POR SUA CAUSA. A saída repentina de casa, a briga com meus
pais, o vazio que criou formas estranhas em redor de mim. Tudo foi por sua
causa. O silêncio constrangedor, a saudade imensa, a solidão cruel, enfadonha,
mesquinha, querendo esmagar, queimando pouco a pouco o corpo como brasa viva.
Tudo foi por sua causa, tudo, até mesmo as palavras não ditas, pedaços de
sonhos mal resolvidos, alçados à condição de quimeras sem futuro numa moldura
ilógica.
Tudo foi por sua causa, e de repente me fiz estrada sinuosa
por entre montanhas desconhecidas, rios e cachoeiras sombrias, florestas
repletas de bichos e criaturas com visões de outros mundos. Passei por cidades
enterradas, tudo por sua causa, topei crianças com sorrisos apagados –
lembravam muito vivamente as que eu via na televisão tentando escapar de uma
guerra desigual, flores malcuidadas, mulheres sem dentes, homens mutilados,
velhinhos jogados ao deus dará, esperando à hora derradeira. E havia, também,
criaturas morrendo à mingua, de fome e sede, e outras tantas em busca de
destinos irreais.
Mas no fundo, no fundo tudo foi por sua causa. O fugir de
mim, o me esconder dos medos mais bobos, me esquivar como um gato preto
assustado, tudo, tudo, tudo foi por sua causa, um não sei o que girava como um
enorme carrossel em obstinadas voltas, mas depois, muito depois, a sindrome do
nada me vestiu com pedaços de pano pelo avesso. Ninguém me disse nada, mas eu
sabia, desde o início, tudo foi por sua causa, ninguém me disse nada, ninguém
me avisou de mim, mas era tanto voar, tanta amplidão, tanto marasmo, tanto
contratempo contra o tempo, idas e voltas, vindas e idas, em derredor de um
triângulo desenhado por mãos com dedos cheirando a desgraça.
Tudo foi por sua causa, inclusive estar me buscando,
incansável, por alamedas sem fim, aprisionado num corpo de homem vencido, de
olhar patético, entre angústias desconexas na amplidão de um mar em fúria. Tudo
foi por sua causa. Seguir um curso sem rota adequada, porto indefinido,
inventando fantasias que já nasciam constrangidas pelo fracasso. Era para ser
diferente, a vida inteira, era para ser diferente, acredite, mas vim até aqui
por sua causa, deixei para trás, na poeira, uma vida com os pés no chão, mas
uma vida. Larguei por nada, um lar de alicerces humildes, mas um lar. Meus
entes queridos, laços consanguíneos que nas horas de maior tristeza empurravam
as melancolias incômodas para além-porta.
Foram esses olhos, seus olhos – que me tiraram a razão – e
foi por eles que me fiz ao vento, sem pensamentos, sem lenço para soar o nariz,
sem um níquel no bolso para tomar um café no primeiro bar que avistasse logo à
frente. Foi esse rosto de pele macia, de calor à flor do pecado que me
embrenhou por vales jamais conquistados, me feriu da ponta dos pés a raiz dos
cabelos, em lanças pontiagudas, manuseando indecisões, uma após uma, a correr
abrindo clarões no turvo amanhã que se descortinava tão sombrio como o passado
indevassado.
Todavia, entre erros e acertos, existia um objetivo singular:
tudo foi por sua causa. Mamãe beijando meu rosto, colhendo uma lágrima ao acaso
na soleira da porta, a lâmpada queimada marcando presença num bocal
enferrujado, papai na cadeira de balanço espiando, comprido, o céu muito azul e
sem nuvens, meu quarto sombrio, a cama vazia, a janela fechada, o vidro de uma
das venezianas quebrado, o cachorro latindo, eufórico, o telefone tocando,
tocando, insistentemente, tudo, tudo, tudo mesmo, tudo por sua causa.
Meu Deus, em que lugar desse mundo, em qual canto ermo eu
lhe deixei, em que albergue de segredos lhe escondi que agora não atino com o
portal do esconderijo para acalmar minha impaciência? Tudo foi por sua causa.
Tudo levava a você, tudo, aliás, ainda agora me leva a você, ao seu íntimo, ao
seu amor. Tudo transpirava e transpira a sua presença, a sua satisfação
pessoal, tudo, tudo era tudo foi por causa de você. O revólver, o dedo
impaciente no gatilho mortal, o medo inadiável do nunca, entrelaçado num talvez
sem razão, múltiplas espécies de receios inundando com a escuridão, um cantinho
secreto onde jamais estive. O fim, o nunca mais, o vazio, flores sobre a terra
enlameada, sangue, túmulos e cruzes, covas abertas, gavetões cheios de ossos,
tudo era, tudo foi por sua causa. Até a morte, até o último estertor.
Mais que depressa bebi um cálice do amargo vinho. E
transbordei o peito, em gritos parados no esgar da garganta. Ainda assim, e,
sobretudo levarei comigo a convicção de que valeu o sacrifício empenhado: tudo,
tudo era, enfim, tudo foi por sua causa. E por causa de você... me fiz estrela
cadente no firmamento encantado do seu coração.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de
Sorocaba, interior de São Paulo. 13-4-2018
Colunas anteriores:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-