Aparecido Raimundo de
Souza
“Um dia gatinha manhosa eu prendo você, no meu
coração. Quero ver você, fazer manha então, presa no meu coração... quero ver
você ê...”.
“Gatinha Manhosa” –
Erasmo Carlos.
MARIANA, TODO O SANTO dia se deslocava
junto com os alísios de cada alvorada, até a cidade, para pegar no batente
pesado de uma casa de família. Sozinha, sem marido e filhos, morava com seus
vinte e cinco anos e a mãe doente, enfurnada numa paralisia eterna que redundou
numa incômoda e desconfortável cadeira de rodas. Precisava, por conta, desses
entraves e atravancos, se “virar nos trinta”, como apregoa o apresentador
Faustão, em seus “Domingão do...”, na telinha da Globo.
Assalariada, sem carro
próprio, não havia outro jeito senão o de encarar o buzão. Buzão cheio, vindo
dos musseques espalhados ao longo do caminho. Lotado, esse transporte pintava
no pedaço com gente saindo pelo ladrão. Não só por ele, pelas janelas e portas
também. O percurso do seu bairro se assemelhava tão distante, como se viajasse,
do Oiapoque ao Chuí, numa sucessão longa e cansativa que tornava enfadonha e
maçante toda a trajetória da viagem.
Como nos demais
instantes de sua vida solitária, Mariana pegou, de novo, a mesma condução
rotineira. Antes das sete. Já nesse horário, o fluxo de pessoas se apresentava
bastante intenso. Somente por milagre seria possível cavar um lugar para se sentar.
Mas, os milagres, de vez em quando, acontecem. E, de fato, aconteceu, assim que
embarcou. Pintou um banco caído do céu. Não na janela, no corredor.
Um assento, o que na
verdade importava. Mariana tratou de ocupar correndo a vagues, que surgira ao
acaso. Ufa! Conseguiu. Por pouco. Pelo menos, quase duas horas seguidas,
descansaria o corpo ainda moído da refrega anterior. Pontos adiante embarcou o
Zé Fofão. Zé Fofão nunca embarcava naquele ponto. Todavia, por algum motivo, o
belo rapazola deu sinal e se misturou aos sovacos malcheirosos, as camisas, as
calças e as saias impregnadas por perfumes baratos, sem contar no bochorno que
prometia ser escaldante.
Paga a passagem,
transpôs a roleta se espremendo, como sardinha em lata, entre a ajuntação humana.
Ao seu derredor, braços e pernas, bundas e mochilas, bolsas e sacolas. Nesse
passo, acotovelados a pedidos insistentes de “com licença”, se acomodou.
Estancou justamente ao lado de quem? Ela mesma. Mariana.
A princípio, Zé Fofão
não se deu conta de que a jovem sentada (à crista ilíaca do cinto que segurava
as suas calças e escondia o balofo da saliência enorme que carregava), não
outra, senão a responsável pelos furores dos seus surtos almejados. De repente,
naquele inferno de encosta-encosta, roça-roça, pega, larga, solta, e deixa,
careou com a Mariana.
A linda cochilava
tranquila. Chacoalhava como uma bateia pelo solavanco da rodovia malconservada,
a boca aberta, seguida de uns roncos estranhos. Sem falar na baba. Com a
aproximação praticamente forçada, no empurra pra lá, impulsiona pra cá, Zé
Fofão mais que depressa se alicerçou junto aos ombros de Mariana. Por sua vez,
inconscientemente, a beldade, levada pelos balouços e sacudidelas do coletivo,
começou a pender a cabeça sobre a sua barriga. Não deu outra. Mariana num abrir
e fechar de olhos passou a viagem inteira “pescando”, sonolentando
quimeras.
Zé Fofão que conhecia
bem a formosa, solícito e mais que prestativo, diligente, e acima de tudo, não
querendo incomodar, preferiu segurar as pontas da “amiga”. Ampliou mais e mais
sobre a criatura, se ajeitando, se acomodando, se ajustando, de modo que os
cabelos da preciosa, compridos e sedosos, repousassem igualmente capitonados na
mesma calmaria que embalava a sua modorra.
Assim, Zé Fofão
realizou, sem esperar, um velho e auspicioso divagar que o perseguia há tempos.
Pensando nele, aquiesceu com a sua bondade e, sobretudo, com a lealdade do
cavalheirismo que pontificava a sua atitude de homem decente. Subitamente,
porém, o fortuito. O motorista freou abrupto, num imediato inopinado. Na
rebalsada que se sucedeu a esse imprevisto, Mariana se sobressaltou.
Acordou agitada,
inquieta, assustadiça, limpando, com o dorso da mão esquerda, a baba saliente.
No calor desse pasmo, corou o rosto.
Envermelhou dos pés a cabeça, ao se pilhar recostada na pança balofa,
contudo, macia e aconchegante, jeitosa e quentinha de seu vizinho de rua.
Aturdida, Mariana
ensaiou um meio sorriso comprometida com o acanhamento que lhe feria os brios e
a tez espavorida. Limpou, de novo, num trejeito rasteiro, os lábios carnudos.
Sorriu martirizada. Olhou para os lados, apreensiva e envergonhada. No canto da
janela, a companheira de infortúnio. Uma estudante ouvia música atarracada aos
fios da extensão do fone do celular enfiados em seus ouvidos. Por momentos, riu
baixinho da cena patética em que se vira metida.
Num apressurado
relance Zé Fofão viajou. Voou longe. Nesse adejar, saltitou como um mico
astronauta. Vislumbrou nela, a Sulamita inspiradora do Cântico dos Cânticos.
Voltou a si quando a dorminhoca o agitou e balbuciou quase num fio inaudível de
voz:
—
Que vergonha —
disse muito séria e encabulada! — Meu Deus! Que horror!
Seu Zé, por tudo quanto é mais sagrado.
Estou morrendo de vergonha. Não acredito que cheguei até a babar...!
Zé Fofão, como sempre,
elegante, garboso, distinto e diligente, se fez de desentendido. Bancou o bom
samaritano. Travestiu-se de sonso, dissimulado, fingido, astuto, ladino,
velhaco. Comia quieto, como dizem os mineiros, atacando as beiras. Engoliu, pois, a vontade de vomitar de uma só
golfada que a boazuda e gostosa vizinha (meia dúzia de casas abaixo da sua),
além de esfumar, cuspia, fremia, ressoava, retumbava, como um trator exausto
depois de terminada a sua longa jornada laboriosa.
Todavia, se agisse
dessa forma impensada, perderia a oportunidade de chegar junto. De se
estreitar, de conseguir dar um passo adiante. Afinal de contas, solteiro, não
tinha namorada. Morava com os pais. Em surdina, amava a Mariana, a mulher flor
em botão, que todos os domingos se dispunha vir até sua casa, empurrando a
genitora cadeirante para tomar café na varanda e conversar com a sua mãe.
Nessas visitas, impreterivelmente acompanhava a dupla, um bolo gostoso de fubá
ou chocolate, feito horas antes especialmente para esses encontros.
Quem sabe, um dia,
aquela espécie de Huri fofa e meiga que habitava seu paraíso interior, não se
abrisse igual mala velha, ou paraquedas. Ou qualquer outra coisa que se
escancarasse com sofreguidão voraz, prestes a engolir com línguas e dentes as
suas pretensões adormecidas mais prementes.
Por que não?! Sim, por
que não?! “Para Deus nada impossível”. Assim pensando, se fez sutil, educado,
perspicaz, hábil, quase impalpável. Amansou seus impulsos, agrilhoado:
—
Fique a vontade, dona Mariana —
acudiu o espertalhão, com abundante irreverência, piscando um olho
cumprisse, quase às raias de um faniquito sexual. —
Se avexe não! Amigos e vizinhos... são para essas coisas.
Título e
Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Juiz de Fora, nas Minas
Gerais, 24-4-2018
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Somos todos herdeiros da velha ditadura, uma dentadura que, ainda agora, nos morde escancaradamente a vergonha
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