segunda-feira, 14 de outubro de 2024

O parágrafo

Henrique Pereira dos Santos

A propósito do fim da comissão de serviço de Lucília Gago, por estes dias, não foi um nem dois jornalistas que, procurando resumir o seu desempenho à frente do Ministério Público, falaram no parágrafo que provocou a queda do governo de António Costa.

O que provocou a queda do governo de António Costa foi António Costa, não foi nenhum parágrafo escrito por terceiros.

Se dúvidas houvesse na altura, bastaria o percurso posterior de António Costa para demonstrar o que já então me parecia evidente: António Costa tinha perfeita consciência do grau de degradação institucional que o rodeava e estava apenas à procura de um pretexto, qualquer que fosse, para justificar a forma como tencionava tratar da sua vidinha.

Como sempre, António Costa procurava não fechar umas portas para abrir outras, o que ele estava a fazer, como sempre fez, foi ir abrindo portas, sem nunca deixar muitas outras abertas porque o futuro é uma coisa muito incerta.

Até havia vários precedentes na sua carreira, por exemplo, a forma como abandonou o governo de Sócrates, sabendo que a probabilidade de dar asneira era muito grande, que o esteve estar nesse governo apenas o tempo necessário para escolher a melhor forma para se distanciar, sem nunca demonstrar que essa era uma preocupação central para ele (o discurso de defesa de Sócrates no último congresso do PS que elegeu Sócrates, com uma votação norte-coreana, já depois de chamada a troica, é notável como demonstração do cinismo que caracteriza António Costa, que sempre esteve fartinho de saber quem era Sócrates e como funcionava).

A carreira de António Costa, na forma como ocorreu, só é possível num ambiente mediático como o que existe em Portugal, com todas as redações dos jornais dominadas pela esquerda woke, enfronhadas na intriguice que assenta nas fontes anónimas e na leitura de "entrelinhas" feitas por jornalistas que não sabem que cada leitor escolhe as entrelinhas que quiser, não havendo utilidade nenhuma em qualquer jornalista se entreter a explicar ao povo ignaro quais são as entrelinhas de qualquer discurso.

Mithá Ribeiro, ontem, no Observador, escreveu uns parágrafos muito lúcidos e expressivos sobre um dos problemas centrais do jornalismo atual:

"Quantos jornalistas saem noites seguidas ao mar com pescadores? Quantos saem à rua, semanas ou meses seguidos, com polícias em ações de patrulha habituais no bairro difícil? Quantos passam noites e noites com trabalhadores municipais da recolha de resíduos urbanos? Quantos partilham semanas, meses e anos seguidos de convívio quotidiano com uma família ou comunidade cigana? Por aí adiante.

Como pode um jornalista conhecer o país de que fala e emitir juízos de valor sem evidências empíricas sólidas? Como pode uma classe profissional inteira fugir do país real para gravitar em torno da casta governativa?".

Não venham com a história da escassez de meios nas redacções, por favor, a opção de aceitar citar fontes anónimas, quando esse anonimato não protege a vida de ninguém, mas apenas a posição política dessa fonte que assim pode espalhar o que lhe interessa sem assumir a responsabilidade pelo que diz, é uma opção que viola os códigos da profissão e não decorre da falta de meios, decorre de uma opção pela calhandrice em detrimento do jornalismo.

É a esta calhandrice permanente, esta quadrilhice, esta intriga à volta do que alguém diz, a que alguém responde de forma igualmente anônima, que estão rendidas as seções de jornalismo político, que permite a António Costa singrar como o melhor político da sua geração, com base em tretas como a de que o seu governo foi deitado abaixo por um parágrafo, e não pela degradação institucional que sempre caracterizou a atuação política de António Costa, como instrumento para melhor tratar da sua vidinha no meio da confusão.

Título e Texto: Henrique Pereira dos Santos, Corta-fitas, 14-10-2024 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-