domingo, 8 de dezembro de 2024

[As danações de Carina] No espelho do meu quarto... a ‘re-descoberta’ de ser feliz

Carina Bratt 

HOJE, PELA MANHÃ, depois de ter tomado meu banho, fui para diante do espelho do meu quarto me embelezar. Percebi algo inesperado. Aliás, algo estranho. Meu rosto. Ele não parecia mais o mesmo. Não foi uma mudança física óbvia, como uma ruga aqui, ou ali, tampouco uma cicatriz esquecida. Foi uma ausência, como se a pessoa que me olhava estivesse distante, perdida em algum lugar do tempo. Me lembrei de quando, anos atrás, o espelho era um companheiro constante, refletindo não apenas a minha aparência, mas também meus sonhos, medos e esperanças. Cada linha e curva contavam histórias de noites mal dormidas, de risadas incontroláveis e na maioria das vezes, de lágrimas silenciosas. 

Mulher no espelho, óleo sobre tela, Zélia Salgado

Hoje, nesse momento em que saio debaixo do chuveiro pingando o frio da água e deixando pequenas ilhas em formas de gotas chão afora, tudo me pareceu (ou melhor, me parece) superficial. Enfraquecido em mim, como se a profundidade do meu rosto tivesse sido sugada para fora do vidro deixando apenas uma imagem plana e vazia. Ao longo dos meus anos vividos, a vida, bem sei, foi cobrando seu preço. As responsabilidades aumentaram, os dias se tornaram rotineiros e os sonhos juvenis foram substituídos por metas tangíveis e prazos apertados. Me fiz mulher, arranjei um bom emprego que me paga as contas. 

Conheci o Aparecido e, de certa forma, tudo o que hoje tenho, sobressaem as digitais dele. Inclusive o salário que ganho. O espelho, que antes me parecia um portal para o mundo, se tornou nesse momento em que me coloquei diante dele, como um objeto estranho, tipo assim, algo que a gente se olha de relance antes de sair de casa. Mas, nesta manhã –, que droga –, decidi que se fazia necessário reencontrar aquela pessoa que um dia habitou esse reflexo. Talvez ela (euzinha) ainda estivesse lá, escondida ali, sei lá, enfurnada entre as camadas de convenções sociais e responsabilidades diárias. Chacoalhei os cabelos. Fiz uma careta feia, mostrei a língua. Esqueci de escovar os dentes... 

Respirei fundo e me permiti um momento de verdadeira introspecção. Me lembrei das risadas com amigos de infância, das noites insones na universidade e das primeiras paixões. Cada memória trouxe um brilho novo aos meus olhos. Um sinal de que a pessoa que eu fui ainda vive dentro de mim, esperando, talvez, para ser repaginada. Com um sorriso meio ‘meia boca,’ percebi que, ao buscar o meu rosto no espelho, encontrei mais do que a imagem física. Me deparei com fragmentos da minha essência. Pedaços da minha história que estavam ansiosos para serem reconhecidos... preciso, vez em quando, passar um produto para que o espelho fique bem limpo e mostre tudo o que precisa ser visto... 

Assim foi. Decidi que não apenas veria meu rosto como antes, mas também buscaria reencontrar a pessoa que ele sempre refletiu. Apesar de meio indefinível ao meu perfil dos dias atuais, eu me acharia. Com olhos questionadores, dei uma de louca. Às vezes faço isso. Às vezes quebro a cara. Noutras, fico a ver navios. Perguntei ao espelho, assim de chofre: ‘O que houve?...o que mudou?’. O reflexo, obviamente, não respondeu.  Em seu silêncio, todavia, capturei –, ou melhor dito –, encontrei a minha resposta. Me veio à mente lembranças adormecidas das risadas com amigos de infância, das noites insones na universidade e das primeiras paixões. 

Cada memória trouxe uma faiscação nova aos meus sentidos. Também aos meus olhos. Um sinal de que a pessoa que eu fui ainda vivia aqui dentro de mim, esperando apenas para ser redescoberta. Encontrada. Não queria tocar nesse assunto, mas no atropelo desse momento, se faz essencial. Vi meu papito que se foi... entendo, isso torna essa experiência no espelho do meu quarto, ainda mais profunda e significativa. É uma espécie de volta ao ‘ontem,’ ou uma parte importante incrustrada dentro da minha carteira de identidade. Seu olhar sereno e cheio de sabedoria parecia me dizer que, apesar das mudanças, a essência, o não percebido que se acha no âmago de quem somos, permanece para todo o sempre. 

Ele se foi. Papai se foi. Deixou minha mãe, me deixou aos solitários do dia a dia, mas, sobretudo, deixou em mim, ou ficou para sempre, traços que não se apagam de sua presença, lembranças imorredouras que ecoam em cada expressão que herdei. Com um sorriso, agora de alegria e de felicidade, percebi que, ao buscar o meu rosto no espelho do meu quarto, no trilho que pingou deixando o rastro do meu banheiro até o meu lugar de descanso, onde estou agora, encontrei mais do que a imagem física dele. Recolhi fragmentos da minha essência, do meu ‘eu’, pedaços da minha história que estavam ansiosos para serem reconhecidos. Uau! Meu Deus! Sorri, me eletrizei por dentro. 

Mesmo instante, me refiz, me reconstruí... algo poderoso me reanimou, me reavivou. Decidi que de hoje em diante, não apenas veria meu rosto como antes, mas também o daquele general linha dura, seu semblante sério, e, ao mesmo tempo, meigo e gentil, que amava mamãe, que saia com a gente a passear... noutras me levava para ver o mar, o céu estrelado, que me enchia de mimos, que comprava sorvete de chocolate, e pagava aquela pizza de mussarela com suco de laranja que ainda agora amo de paixão. Na verdade, a partir desse instante, pretendo reencontrar nesse espelho do meu quarto, sempre, a pessoa amorosa, meiga e viva, sobretudo viva e feliz que ele reflete. 

Título e Texto: Carina Bratt, da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, 8-12-2024     

Anteriores: 
Existe uma saudade imensa chorando dentro de meu coração. O que fazer?! 
A terrível saga das baratas e a famosa lata de inseticida (Parte 2 – Final) 
[As danações de Carina] A terrível saga das baratas e a famosa lata de Inseticida 
Trapos e farrapos dos ‘eus’ dentro de mim 
Lembranças de momentos que não vingaram

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-