Carina Bratt
NO SILÊNCIO quase sepulcral de um desvão que havia num velho sofá de canto na sala enorme daquele casarão carcomido pelo tempo, vivia um amontoado de baratas domésticas, das mais diversas raças. Todavia, em meio desse ‘barateiro,’ duas cosmopolitas advindas da mesma barriga, eram, de fato, irmãs legítimas de sangue. Ana, a mais velha, chegara na casa dos vinte. Sua irmã, beirava os quinze. Com duas décadas nas costas, se fazia experiente até dizer chega. Em oposto, a sua irmã Gretchen, não levava a vida muito a sério. Brincalhona até dizer chega, sempre às voltas com traquinagens perigosas, aprontava de montão. Não fosse a visão ampla da vida perigosa e o maquiavelismo adquirido com as intempéries do dia a dia, já teria virado cadáver rolando pelas caixas de gordura, ou pior, boiando às intempéries dos bueiros entupidos ao longo da rua.
Na flor dos quinze, Gretchen não fugia às regras da sua adolescência e certamente teria sofrido um dos muitos acidentes caseiros que apareciam em seu caminho como formigas num pote de mel. Norte idêntico, a sua irmã Ana teria galgado a idade em que chegou, não estivesse de esbugalhos arregalados o tempo todo. Gretchen estupidamente dispersa e espalhafatosa, se misturava com as outras baratas residentes (todas elas conhecidas como ‘Francesinhas’) em uma cristaleira do tempo em que se pegava moscas com historinhas água com açúcar, agregadas, em paralelo, com mais uma penca de praguinhas misturadas das genealogias das (‘Asiáticas’ e umas dez ou doze, de sangue ‘oriental’). Essas, metidas à besta, preferiram se acomodar num piano sem teclado e voz que havia sido abandonado no corredor que acessava os quartos do estuporado e aniquilado solar. Independente da origem, esses seres onívoros somente sabiam fazer arte e aprontar poucas e boas.
A maior diversão dessa galera desmiolada... dançar rebolando o traseiro e as nervuras, como a cantora Gretchen. Bastava um rádio de algum vizinho tocar a ‘Conga Conga Conga,’ ou qualquer outra merda do repertório dessa carioca nascida em 25 de maio de 1959 e a ‘barataria,’ em peso, alvoroçava os esqueletos. No mais, com as ideias ainda não formadas, esses pequenos seres mundanos acreditavam em tudo, e, por várias vezes, muitas se viram esmagadas às solas de sapatos, botas pneus de carros e vassouradas, partindo no minuto seguinte para os braços da morte. Gretchen só não viajou com passagem só de ida desta para melhor, pelo motivo de sua irmã Ana, como já revelado acima, ter uma visão mais acentuada da vida, apesar do seu corpo pequeno e ovular de menos de dez centímetros, a cabeça curta e subtriangular, ou opistognata, os olhos compostos e avantajados encimados (na verdade por dois ocelos, e, de roldão, por antenas longas e filiformes.)
Por conta disso, desconfiava de tudo que se fazia novo naquela casa de pele longeva, onde moravam desde que nasceram e foram abandonadas pela mãe. A vida seguia tranquila até que, numa tarde estrepitosa, um cheiro estranho invadiu o ar. Ana, uma áptera de berço bem-nascida, com seus sensores aguçados, seu tórax com três pares de pernas cursoriais, logo percebeu que algo se fazia fora dos trilhos.
– Gretchen, acho que temos problemas" –, sussurrou preocupada.
Gretchen nesse angustioso momento, tentava invadir um saco de balas. Parou o que fazia e se aproximou da irmã.
– Que cheiro é esse, mana? Não me parece boa coisa...
Antes que pudessem reagir, viram nas mãos de uma das serviçais, uma embalagem enorme de inseticida dessas tidas como econômicas sendo borrifada em todas as direções.
As duas sabiam que precisavam ser rápidas. Ana, ladina, não perdeu tempo. Guiou Gretchen por um caminho seguro entre um amontoado de quinquilharias espalhados pelo assoalhado.
– Rápido, por aqui! –, berrou enquanto conduzia a aparentada por um buraco minúsculo num estreito da parede entre o lombo e o chão ocupado por um armário cheio de mantimentos. O cheiro forte, não dava trégua. Se espalhava pelo ar como fogo morro acima, água ribanceira abaixo. Ligeiras, as duas se refugiaram onde, num primeiro momento, a neblina química não as alcançaria. Quase meia hora depois o ambiente finalmente voltou ao normal e o perigo iminente parecia ter se dissipado. Ana e Gretchen saíram, então, com as devidas cautelas.
– Vamos precisar, a partir de agora, ser mais cuidadosas – sussurrou olhando ao redor. Esse imprevisto não me pareceu excelente em nosso convívio.
De fato. Enquanto se resguardavam, viram pelo chão espalhados, um elenco enorme de baratas de pernas para o ar. Outras pedindo socorro, emitiam gemidos tétricos e agonizantes e muitas, pouco à frente, caladas pelo silêncio da morte. Gretchen, apavoradíssima, concordou com um leve aceno de cabeça. Aquela pequena barata nesse interregno de tempo, realmente aprendeu uma lição valiosa sobre a sobrevivência em um mundo cão, cheio de ciladas, dentes, mordidas e uivos perigos os mais impensados e aleatórios. Contudo, num ponto, num apenas, esse evento serviu de trampolim para a determinação e a amizade delas aumentar e se sedimentar, uma vez que se fortaleceram diante de um punhado de novas adversidades. A vidinha ‘baratal’ continuou, com a Gretchen e as demais amiguinhas (que por milagre sobreviveram), e agora, se colocariam mais vigilantes e alertadas, prontas para enfrentarem qualquer novo desafio que viesse a surgir.
A poucas e minguadas horas, a vida normal voltou a reinar, com as irmãs Ana e Gretchen, desta feita, em repicagem máxima prontas, todavia, para enfrentarem qualquer novo desafio que surgisse. Sempre que a empregada desse sinal de pintar no pedaço com uma embalagem de inseticida para usá-la em desfavor das suas amigas, destacando ‘Proteção Total Para Toda Família,’ Gretchen dava um jeito de passar a perna na funcionária e, logicamente, no maldito inseticida travestido com as roupas de um soberbo e chatérrimo aerossol.
Conheçam agora, caras amigas da ‘Grande Família Cão que Fuma,’ algumas das espécies de baratas que, sem que saibamos, dividem espaço com a nossa vida comum. E o mais importante e inacreditável. Sem convites, ou sequer o simples indagar se carecemos de algum tipo de ajuda financeira para os acréscimos às despesas.
Blatella germanica (barata-alemã)
Blatella orientalis (barata-oriental)
Gromphadorhina portentosa (barata de Madagascar)
Periplaneta americana (barata-americana)
Periplaneta australasiae (barata-australiana)
Periplaneta fuliginosa (barata-fuliginosa ou barata-marrom-fuligem, banda-marrom ou banda-café)
Supella longipalpa (barata-de-faixa-marrom).
(Do livro ‘As baratas travessas’ de Elísia Pontes do Carmo, Editora do Autor, São Paulo – 2020 - 128 páginas.
Domingo que vem, 24, na segunda e última parte, o desfecho final empolgante e o que a tresloucada da Gretchen aprontou para evitar que novos bandos de baratas (a maioria suas coleguinhas das arruaças diurnais), viessem dar adeus à vida, e, obviamente, para se verem livres da maldita e irresponsável criada (graças à Deus) e o mais importante: à odiada e amaldiçoada embalagem do pesticida, da qual a megera funcionária insistia em sair borrifando por todos os cômodos da decrépita habitação.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 17-11-2024
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