Para a PF, Bolsonaro usou a técnica de desinformação em massa conhecida como firehosing para desacreditar urnas eletrônicas e tentar golpe de Estado
David Agape
Em 26 de novembro de 2024, a Polícia Federal divulgou o aguardado relatório final da investigação sobre o suposto golpe de Estado no Brasil. O documento, com 884 páginas, é fruto de quase 17 meses de apurações que envolvem ações atribuídas a militares, civis e aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entre as acusações estão conspirações para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, ameaças ao Supremo Tribunal Federal (STF) e planos para a abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Esta investigação também
inclui outras etapas preliminares, como o trecho relacionado aos “Kids
Pretos”, que analisei anteriormente em A Investigação e onde
apontei fragilidades graves. Entre os principais problemas, destaca-se a
ausência de provas de que o grupo teria planejado assassinar ou sequestrar
Alexandre de Moraes. As conclusões da PF, nesse caso, baseiam-se exclusivamente
em inferências vagas, interpretações subjetivas e termos especulativos como
"provavelmente" ou "possivelmente". Além disso, há
tentativas de estabelecer conexões entre documentos e supostos atos
investigados sem qualquer embasamento.
Esperava-se que o relatório
final esclarecesse essas questões, mas ele manteve muitas sem resposta e
levantou novas dúvidas. Os "possivelmentes" estão espalhados por todo
o relatório, com pelo menos 96 ocorrências. A pressa em encerrar a investigação
é evidente, assim como o esforço criativo dos investigadores para sustentar a
tese de que, já em 2019, ao assumir a Presidência, Jair Bolsonaro teria
iniciado um esforço coordenado para disseminar a narrativa de vulnerabilidade
no sistema eletrônico de votação. O objetivo, segundo o relatório, seria
“sedimentar na população a falsa realidade de fraude eleitoral” como parte de
uma estratégia maior: garantir sua permanência no poder mesmo diante de uma
eventual derrota nas urnas durante sua tentativa de reeleição, culminando na
abolição do Estado Democrático de Direito.
Para implementar essa conspiração, o grupo teria se organizado em núcleos estratégicos, incluindo:
·
Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral;
·
Incitação de Militares ao Golpe de Estado.
·
Núcleo Jurídico;
·
Apoio Operacional às Ações Golpistas;
·
Inteligência Paralela;
·
Cumprimento de Medidas Coercitivas;
Segundo a investigação, os
integrantes desses núcleos utilizavam o modus operandi da chamada “milícia
digital”, conceito central do Inquéritodas Milícias Digitais (Inquérito 4874/DF), que também abriga a atual
investigação. Instaurado em julho de 2021 pelo ministro Alexandre de Moraes,
este inquérito é um desdobramento dos inquéritos das Fake News e dos Atos
Antidemocráticos. Sua legalidade e constitucionalidade têm sido alvo de intensas críticas. Além de ter sido aberto de ofício, sem provocação do Ministério
Público, Moraes concentra as funções de investigador, acusador e juiz, sendo,
em algumas situações, a própria vítima das ações investigadas, comprometendo a
imparcialidade do processo. Moraes já prorrogou 11 vezes as investigações desde
sua abertura, operando uma estrutura de investigação permanente.
Outro ponto controverso é a
inclusão de pessoas sem foro privilegiado entre os investigados, o que deveria
ser tratado em primeira instância. Para justificar isso, o STF invocou o artigo
43 de seu Regimento Interno, que permite a abertura de inquéritos pelo
presidente da Corte em casos de infrações ocorridas em sua sede ou
dependências. Em uma interpretação questionável, o Tribunal ampliou esse
conceito para incluir a internet e redes sociais como “dependências do STF”,
permitindo que o inquérito alcançasse indivíduos fora de sua jurisdição, como
o empresário Elon Musk, incluído em abril de 2024 após o X (antigo Twitter) se recusar a
cumprir ordens judiciais de revelar dados de seus usuários.
As milícias digitais,
apontadas como um braço do “gabinete do ódio” — estrutura informal de aliados
de Bolsonaro —, são acusadas de promover campanhas coordenadas de desinformação
e ataques sistemáticos a opositores políticos. Segundo a PF, o grupo utilizou
uma estratégia que consistia em disseminar, em alto volume e por múltiplos
canais, narrativas falsas sobre fraude eleitoral.
Em um dos trechos, a PF
declarou: “Por mais inverossímil que possa parecer, os investigados sabiam que
a narrativa falsa de fraude eleitoral, sendo disseminada por muito tempo, por
vários canais, especialmente na internet (...), em grande volume, seria extremamente
eficiente em seu público”.
Embora o relatório não utilize
explicitamente o termo, a descrição aponta que a técnica seria o firehosing,
alegada técnica de desinformação caracterizada pela disseminação massiva de
informações falsas ou enganosas para confundir e manipular o público.
Nos últimos anos, setores da
esquerda têm utilizado o conceito de firehosing para
argumentar que a direita, especialmente Bolsonaro, recorre sistematicamente a
essa estratégia para minar a confiança nas instituições democráticas. Contudo,
essa explicação simplifica excessivamente um contexto político e social muito
mais complexo. A Polícia Federal, por sua vez, parece ter adotado essa visão de
forma acrítica, tratando qualquer fluxo intenso de informações nas redes como
exemplo de firehosing. Essa abordagem desconsidera que movimentos
descentralizados e espontâneos podem gerar padrões de comunicação similares sem
que haja uma organização centralizada, especialmente em cenários polarizados.
Além disso, o relatório
confunde narrativas políticas com desinformação deliberada. Mesmo críticas
infundadas ao sistema eleitoral, por mais polêmicas ou equivocadas, não podem
ser criminalizadas. Em democracias, a liberdade de expressão protege inclusive
discursos errados ou controversos, desde que não incitem diretamente a prática
de crimes. Ao classificar toda crítica como desinformação, cria-se um
precedente perigoso para cerceamento da liberdade de opinião e para a repressão
de discursos políticos legítimos.
A origem do Firehosing
O conceito de firehosing tem
sido amplamente disseminado no Brasil por Letícia Sallorenzo, jornalista de
Brasília e figura já citada
em A Investigação como a "Bruxa" mencionada nas reportagens
da Folha de S.Paulo sobre o uso informal da Assessoria
Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE, expostas por Glenn
Greenwald na série da “Vaza Toga. Letícia Sallorenzo, conforme registrado em
seu currículo Lattes, se define como “colaboradora informal” do TSE. Fontes
indicam que ela foi responsável por enviar dossiês de críticos de Alexandre de
Moraes e pressionar assessores do ministro para que contas desses indivíduos
fossem removidas das redes sociais. As mesmas fontes afirmam que Letícia também
tem acesso privilegiado a eventos fechados com Moraes e ataca qualquer um que
critique o ministro.
Na sua tese de doutorado em
andamento na Universidade de Brasília (UnB), Letícia argumenta que o firehosing estaria
diretamente relacionado aos ataques ao ministro Moraes, apresentando-o como
alvo de uma “estratégia coordenada” para desestabilizar o Judiciário e
desacreditar suas ações. No resumo do projeto, Letícia afirma que a teoria
do firehosing serviu “como base para toda a argumentação
jurídica que levou ao pedido de prisão do blogueiro bolsonarista Allan dos
Santos.” Ela também sustenta que o firehosing é descrito em
documentos do Supremo Tribunal Federal nos inquéritos das Fake News e dos Atos
Antidemocráticos, além de ter sido citado no relatório final da CPI do 8 de
Janeiro, demonstrando sua aplicação crescente em investigações brasileiras.
Originalmente desenvolvido
para monitorar estratégias de desinformação russas, o conceito de firehosing é
relativamente novo, introduzido em 2016 pela RAND Corporation, um think tank
americano especializado em pesquisa e análise de políticas públicas, com forte
histórico de colaboração com o governo dos EUA, especialmente o Departamento de
Defesa. Fundada em 1948, a RAND recebe a maior parte de seu financiamento de
agências governamentais, incluindo US$ 320 milhões em 2023, provenientes de
contratos com o governo americano.
A RAND é criticada por seu
viés e proximidade com o governo dos EUA, especialmente nas áreas de defesa e
segurança. Críticos afirmam que essa relação influencia suas pesquisas e torna
suas recomendações alinhadas aos interesses governamentais e militares
americanos. Em 2023, o Comitê de Ciência da Câmara dos EUA questionou a
confiabilidade de estudos usados para fundamentar políticas públicas, apontando
falta de revisão por pares.
Segundo o site Le
Monde Diplomatique, conhecido por sua orientação à esquerda, o cientista
social Christopher Paul, coautor do estudo que cunhou o termo firehosing, afirmou
em vídeo que nunca imaginou a aplicação do conceito à política
norte-americana. Ou seja, o controle sobre o uso do conceito fugiu das mãos dos
autores, originalmente focados na propaganda russa, especialmente considerando
os vínculos históricos do RAND Corporation com a segurança nacional dos EUA.
Como já destaquei em meu depoimento no Senado brasileiro e em outros estudos, o Consenso Censor Moderno
tem origem no deep state americano e rapidamente se espalhou
pelo mundo. O medo da chamada conspiração russa levou as agências de
inteligência dos EUA, que ganharam enorme poder após o 11 de setembro e a
Guerra ao Terror, a voltarem suas ferramentas de censura e repressão contra os
próprios cidadãos americanos. Com o tempo, esse Complexo Industrial da Censura chegou ao Brasil, sendo adotado por instituições
como o STF, o TSE, ONGs e setores da imprensa, que passaram a usar o modelo
para controlar a liberdade de expressão e moldar o debate público sob o
pretexto de combater a desinformação.
Há também ações de influência direta dos núcleos de inteligência americanos no
Brasil. Além das palestras proferidas por representantes do FBI no TSE em 2017, abordando sua
experiência no combate às fake news, o diretor da CIA, William Burns, pressionou o governo Bolsonaro, julho de
2021, a abandonar as críticas ao sistema eleitoral brasileiro. Segundo a
agência Reuters, durante um encontro no Brasil, Burns aconselhou os
assessores de Bolsonaro a "pararem de subestimar o sistema de votação no
Brasil". Vale destacar que, nos Estados Unidos, o sistema de votação
utiliza cédulas de papel, em contraste com o modelo eletrônico brasileiro.
Título, Imagem e Texto: David Agape, Substack, 28-11-2024
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