terça-feira, 19 de novembro de 2024

[Aparecido rasga o verbo] Eu morri! E agora, o que faço da minha vida?

Aparecido Raimundo de Souza 

ACORDEI, DE REPENTE em um lugar estranho, um espaço que, de pronto, não reconheci.  De imediato, me vi cercado por uma luz suave e envolvente. Me perguntei, meio espantado e incrédulo, dogabobado e ensombramentado: o que aconteceu? Me lembrei, então, da última respiração, do postimeiro pensamento, do derradeiro momento ao lado daquela figura familiar que fazia tempo vivia ao meu lado. Uma mocinha (o nome dela, Deusa), de vinte e poucos anos, que cuidava de mim, limpava minha bunda toda cagada, que me dava um banho gostoso, me trocava as roupas, que me dava de comer e beber, e, a custo de muito sacrifício, me botava na cama. Tudo parecia distante, perdido, afogado nos cafundós das insignificâncias, como uma lembrança embaçada e nebulosa. 

Eu estaria morto? Não, isso não era possível! Eu cadáver? Tipo assim, um escanifre disforme e sem vida? Um esqueleto inerte sem as funções vitais de poder respirar, e me locomover sozinho? Pior, sem os auspícios de continuar vivendo a plenitude da vida? Sim, tudo e muito mais — mais e muito tudo —, se fazia grudado naquela sensação de estar completamente fora do controle. Algo inexplicável pulsava numa tênue chama de pouca espessuração ao passo que uma plenitude enferma a cada novo minuto crescia assustadoramente dentro de mim. Sei lá. Tinha consciência, estava, realmente, aniquilado. Algente, embotado, enceguecido. Direto ao ponto: eu me tornara um defuntado mesmo, com todas as letras? Sim! E agora, meu Deus, e agora, o que fazer? 

No início, a confusão pirou meu cabeção. Tomou conta. Se fez confusa, obtusa, ababelada, pesada dentro de um real “meio que insólito.” Não, meio jamais —, “inteiramente apocalíptico.” Aí começam a chover perguntas: o que significa estar fora de órbita? O que significava ser um zero à esquerda ou à direita? Caramba, o que é se sentir, ou ser uma alma perdida? Pior, como é viver cotidianamente sem os benfazejos, ou sem a chance de usufruir dos movimentos, sem ter, ao alcance das pernas e dos pés, o direito de ir e vir? Para os que morrem, não existe um “livro-manual,” nem uma lista pronta de tarefas a serem cumprida à risca. Com o tempo, percebi que esse quadro se fizera o meu “estado-hoje,” o meu agora, ou a minha segunda chance, a minha  oportunidade de reavaliar tudo o que havia vivido e aprendido no meus longos anos de existência terrena. 

Na verdade, perduravam muitos detalhes não resolvidos. Um amontoado de coisas ficou pela metade. As palavras não ditas, os sonhos abandonados, os filhos em tenra idade deixados de lado, os relacionamentos relegados para segundo plano... tudo numa confusão enlouquecida começou a se formar como uma imagem em uma tela gigantesca diante de meus espantos e arregalos. Nessa aflição incoerente, pude ver os rostos das pessoas que amava. Meus filhos e filhas, netos, ex mulheres, papai, mamãe, irmãos, primos, alguns amigos distantes, outras criaturas esquecidas, todavia, cada uma delas envoltas num só pulsar de vozes clamando e chorando, deixando junto com as lágrimas um eco forte na memória do meu ser. 

Senti de repente, uma urgência de me conectar com esses fragmentos dispersos. Tantos fios soltos, uma quantidade enorme de caminhos que poderia ter percorrido... atalhos e becos que sequer me veio à cabeça experimentar. Por conta, uma ideia surgiu: eu poderia me tornar um guardião da minha própria memória em proveito próprio. Em igual sorte, ajudar aqueles que ainda habitavam à Terra a valorizar cada instante, cada segundo... a expressar seus sentimentos antes que fosse tarde demais. Essa ideia me animou. Uma energia nova começou a fluir de dentro de mim. Decidi, sem mais delongas, explorar esse novo mundo que se descortinava. Comecei a concatenar, em pensamentos tipos esses “flash de câmeras fotográficas,” a ensaiar passos vagarosos por paisagens etéreas, onde o tempo se resumia em não existir. 

Encontrei, nessa aventura soberba, outras almas, algumas tão perdidas quanto eu —, outras tantas que tinham encontrado o seu propósito. Aprendi que cada um carrega dentro de si uma história única, e que mesmo na morte, ou depois dela, ou ainda entre a “passagem” deste andar para o de cima, permanecem imutáveis lições grandiosas a serem aprendidas e compartilhadas. Comecei a visitar os vivos. Que coisa maluca! Que loucura sem pé nem cabeça! Do nada, me vi diante dos que ainda não vieram embora. Cheguei perto de cada um, não como um fantasma assustador, pelo contrário, como uma presença suave, quase num sussurro. Vi de perto as dores e alegrias que compõem a experiência humana. 

A cada interação, eu sentia que prosperava por sendas ainda não pisadas. Nelas, deixava um pouco de mim para trás, e também trazia de volta dentro do coração, algo profundo e verdadeiro. Um sorriso, um perdão, uma palavra de conforto, de brandura, um carinho, uma lembrança. Era tipo assim, como uma dança de trocas, ou melhor dito, uma interconexão que transcendesse o limiar da vida e da morte, num só momento, ou no exato instante em que, como num acender e apagar de uma lâmpada, eu me pegasse num tempo imaginário. Com esse tempo, ganhei a missão de estar aqui onde estou. Do nada, meu “hoje-agora” se tornou claro. Eu não sou apenas uma alma errante, carente, inoportuna ou chata. Sou mais que isso. Na verdade, me transformei num “elo-ligação” entre mundos. 

Meu papel nesse exato momento é inspirar, lembrar e resgatar. Sobretudo resgatar. Me vejo, pois, por conta, como um farol para todos aqueles que se sentem perdidos, esquecidos, deixados de lado, fundeados aos reveses da ingratidão. Me vi de mãos dadas com aqueles seres transtornados que carregavam fardos pesados e não sabiam como seguir adiante. Assim, penso, se certo ou errado, se consciente ou em estado de pura letargia, a morte, do nada, se transformou ou me transmutou em uma nova vida, uma efetividade, ou uma animação cheia de propósitos e significados. Por assim, mesmo que eu não possa mudar o meu passado, sei que consigo influenciar o presente. E minimizar o futuro. Ao me tornar parte do tecido da vida dos outros, a minha individualidade negra e descolorida, que antes parecia oca e vazia, ganhou um novo sentido. 

Não apenas e tão somente uma concepção ou um ânimo de rosto diferente. A verdade é que, mesmo aqui, entrelaçado nas amarras da ponte da morte e da vida, reconheço, sempre haverá algo mavioso e extraordinário a ser feito. Sempre haverá espaço para o amor e consequentemente para a conexão harmoniosa. E isso, por si só, é a plenitude maviosa de uma outra vida que eu escolhi para seguir existindo em espírito novamente. Que o Pai Maior por sua misericórdia, se apiedou de mim e me concedeu, por Graça, uma segunda chance. Uma oportunidade de ser “eu mesmo” de me remodelar, de me recompor, de me reestruturar dentro daquilo que nunca consegui ser (quando rosto mascarado pela imbecilidade), respirava como um vivente repletado de vida plenamente abundante, entretanto, não sabia como usar essa força para me achar dentro de um espaço que eu pensava nunca fosse me divorciar.    

Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, de Vila Velha, no Espírito Santo, 19-11-2024

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