Carina Bratt
A VIDA CONTINUOU normal (até certo ponto) para as baratas das mais variadas famílias que viviam tranquilas no aconchego do velho casarão. Ana e Gretchen, as irmãs, agora inseparáveis, se fizeram mais unidas, ariscas e espertas, após o trágico acidente da desmiolada empregada que, de posse de uma embalagem contendo um remédio mortífero, nomenclaturado por um inseticida de suporte poderosíssimo, saiu, a seu bel prazer, pelos acantoados, borrifando um veneno considerado de concepção medonha. Um maligno que, em poucos minutos de aplicação dizimou, aos borbotões, as baratas, notadamente as ‘duras na queda’, que insistiam em permanecer vivas e intransigentes.
Após a matança de um punhado delas, aliás, uma verdadeira ‘carnificina baratal,’ Ana resolveu sair em campo promovendo uma reunião com as sobreviventes, expondo as suas ideias no tocante a frear definitivamente os movimentos da maldita serviçal tachada como uma operária ‘sem noção,’ não permitindo, obviamente, que ela seguisse mandando para os bueiros e latões de lixo, as vitoriosas que se mantiveram ilesas após o inesperado ataque, visto por elas como pior que o de 8 de janeiro em um outro ‘baratal’ conhecido como STF. Ana colocou em voga, um fato deveras importante, levando em conta que o mais urgente (depois de passado aquele momento classificado como bestial), todas as consanguíneas. Todas, sem exceção.
Inclusive e principalmente, as de linhagens de grupos diferentes, que se agrupassem e seguissem firmes e respirando a paz que sempre reinou naquele ambiente onde, sem distinção de cor, raça e credo os insetos (machos e fêmeas) moravam e viviam em comunidades pacíficas e sem nenhum tipo de problemas, tipo um ajuntamento considerável e incontável de pequenos aborígenes (ou seja, de berço e maternidade estranhos aos seres humanos), não permitindo, em hipóteses nenhuma, que eles movessem céus e terras para a dizimação total dessa leva de invertebrados que odeiam o cheiro de algumas plantas e alimentos, como o louro, o eucalipto, o alecrim e o alho. Ana tinha consciência que se fazia mister correr contra o tempo, pular na frente dos ponteiros do relógio.
O limitado gritava às portas do ‘quase às barbas do escasso.’ Se fazia verossímil, como o abrir e fechar da boca de um jacaré esfomeado, mostrar às agremiações não atingidas, os prós e contras, e, em regra obstinativa, cuidar para que as outras descendências ali misturadas não chegassem à óbito, notadamente as que aguentaram ao arrocho abruptado e se servissem de um caminho seguro que não levasse ao precipício da morte prematura. De outro modo, se fazia imprescindível e imediato, o “barateiro,” em peso, se manter firme e unido, perseverante e teimoso, porfioso e obstinado, ou, em contrário, num curto espaço de tempo, ou talvez, de horas, os troncos das Blatellas Germânicas, as Periplanetas Fuliginosas, as Americanas e Australianas deixassem de existir de uma vez para sempre.
Ana e Gretchen, se propuseram a dar ajuda, ou seja, a estarem prontas para enfrentarem qualquer novo desafio ou ataque que, do nada, surgisse como uma onda inesperada advinda de um mar calmo e, no minuto seguinte, descambasse proceloso. Ficou decidido, na tal reunião, que os residentes perfilados na visão suicida, dariam, a um só tempo, um inesquecível susto na desditosa serviçal, tão logo ela se apoderasse do armário onde ficava a embalagem do inseticida. Gretchen descobriu, nesse interregno, que a infeliz tinha um medo tétrico desses pequenos domésticos. De comum acordo, com a irmã Ana e os demais, seria toda a comunidade permanecer em alerta, e, na hora em que a empregada se preparasse para se munir da lata de inseticida, a ‘barataria’ entraria em cena e colocaria a desgranhenta em seu devido lugar.
Assim foi. A reviravolta se agigantou surpreendente e definitiva. Por fim, em conluio com um número maciço de ‘Francesinhas’ seguidas por uma provida tropa de Gromphadorhinas portentosas e uma chusma obesa de engraçadinhas Supella longipalmas, encurralaram a empregada. Aos estrondos de um ‘socorro, me ajudem’, a jovem derrubou a lata. Nesse balaio de gatos, um comboio de baratas-machos entoando ‘Conga Conga Conga,’ se acercou da embalagem, fazendo a se mover como se tivesse vida própria. A empregada, os olhos atônitos, ao se ver diante dessa cena, se fez branca igual defunto fresco em caixão apertado. Pior, como se tivesse asas, a amotinada voou para a porta da cozinha. Ganhou o quintal, pulou por cima do portão da rua. Na afoiteza tropeçou, se feriu, e, mesmo mal das pernas, conseguiu andar. Picou a mula.
Na sequência, desembestou calçada abaixo, nessa mula inexistente, sumindo no mundo. Os demais empregados ao darem de frente com aquela quantidade enorme de coleópteras –, mesmo pavor estampado –, se embrenharam pela mesma vereda, deixando o senhorzinho e a sua esposa, sozinhos e desamparados. Desde então, ninguém mais se aventurou a trabalhar naquele casarão, que passou a ser visto como “assombrado.” Os filhos do casal, as mentes ‘fobiadas’ em deixarem os pais à mercê da sorte, decidiram leva-los para a cidade. O casarão, em dias de hoje, se transformou em abrigo para moradores de ruas, prostituas, mendigos e drogados. Em paralelo, Ana e Gretchen formaram uma aliança eficiente garantindo a sobrevivência de todas as baratas na velha casa centenária.
A vida prosperou, com Ana aprendendo a confiar piamente nos métodos criativos de suas novas amigas, e as baratas, por sua vez, vivendo as suas aventuras, sempre um passo à frente do perigo, lembrando, não mais a embalagem do inseticida, mas dos moradores de rua que passaram definitivamente a ocupar todos os quadrantes do desgastado palacete. Com essa historinha sem pé nem cabeça, quero deixar para todos, principalmente para às crianças, que as irmãs Ana e Gretchen nos ensinaram várias lições importantes, que podem ser interpretadas de diferentes maneiras. Por exemplo. A amizade e as alianças incogitáveis. A benquerença entre as irmãs mostra que, às vezes, do nada podem ser formadas entre os mais recalcados aliados, um seguimento para o bem comum.
Mesmo aqueles que pareçam ser nossos maiores ou piores inimigos do nada, podem se tornar parceiros valiosos se existir comunicação e compreensão. Outro ponto a ser observado, a capacidade e a adaptabilidade. Ana e sua irmã, de repente, em vista de um acontecimento banal, demonstraram engajamento e adaptabilidade ao enfrentar diversos perigos e buscar novas estratégias para sobreviver. Isso leciona claramente a importância de sermos flexíveis e adaptáveis diante de desafios e mudanças na vida. Existe, igualmente, a seriedade e o trabalho em equipe. Nesse meu texto sublinhei a idoneidade do trabalho em equipe coesa. Apesar das diferenças de opinião, Ana e sua irmã Gretchen a partir de um inesperado, começam a labutar juntas para encontrar soluções e enfrentar o perigo (no caso a moça e a lata de inseticida), sinalizando que a cooperação é essencial para superar todas os entraves, por mais difíceis que possam parecer.
Devemos, igualmente, levar em conta as consequências inevitáveis: Por fim, a crônica também aborda a inevitabilidade de certas situações. Apesar dos esforços e da amizade com as outras baratas moradoras, a embalagem de inseticida trouxe um fim trágico para a empregada. Isso nos lembra que nem sempre podemos controlar todos os aspectos da nossa vida, e algumas consequências são às vezes, imutáveis. Essas lições que trouxe à baila, ressaltam valores importantes e reflexões sobre a vida, a amizade, e a maneira como enfrentamos nossos desafios. A empregada, coitada, sem saber da saga das baratas fez o que achou ser melhor. Seguiu com a sua rotina de manter a casa limpa e livre de pragas. Quando percebeu que o inseticida colocaria tudo nos trilhos, resolveu se valer dele para que a casa em todo seu esplendor ficasse livre da ‘barataria’.
Contudo, seu intento foi levado por ‘água-baixo.’ Ela não tinha ideia da amizade da Ana e sua irmã com o resto das outras moradoras, e jamais imaginaria que havia se formado entre os insetos das mais diferentes linhagens, uma amizade indestrutível. Para ela, o trabalho se consubstanciava em simplesmente garantir que as dependências daquele lar estivessem impecáveis e livres de todos os tipos de indesejáveis. Simplesmente querendo se livrar das pobrezinhas, a empregada sequer imaginou que elas poderiam se unir, juntar foças e partir para o abraço. Atacar. Se sentiu satisfeita por ter cumprido a sua tarefa. Para ela, apenas mais um dia de labuta bem-feita, sem se dar conta das pequenas vidas e histórias que haviam se desenrolado nos escondidos de todos os buracos e desvãos do antiquado casarão.
Nesse tom, ela simples serviçal, seguiu a sua vida, alheia aos dramas e aventuras que as pequenas criaturas enfrentaram, enquanto continuava a zelar pela limpeza e bem-estar de todas as salas e quartos do ‘sobradão.’ Optei por deixa-la tresloucada e escapar às carreiras, tomando rumo ignorado. E achei por bem, mesmo norte, dar um fim legal, unindo, numa só comunhão, todas as raças de baratas, vivendo ‘irmanadamente’ as suas vidinhas simples e sem maiores dores de cabeça. É um texto utópico, contudo, percebam, real. Num amanhã muito breve (tipo hoje), poderemos nos defrontar com cenas iguais as aqui descritas.
Aliás, essa realidade trazida, não está muito longe. A cada dia, novos espaços cidades Brasil e mundo à fora, estão virando ‘casarões abarrotados’ de baratas, e, em meio delas, um infindável número cada vez mais populoso de seres humanos vegetando abaixo da linha miserável da pobreza. Não estamos longe de virarmos baratas (no sentido figurado) vermes e nos acomodar ao lado de vidas destroçadas que perderam a verdadeira razão e a felicidade de viverem plenamente. O futuro do nosso país, é um amanhã incerto e o hoje, uma desgraça anunciada. Faz tempo, o mundo ao nosso entorno se travestiu numa ventania enfurecida em constante destruição de sonhos e certezas que acreditávamos nunca fossem deixar de existir.
Título e Texto: Carina Bratt, de Vila Velha, no Espírito Santo, 24-11-2024
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