![]() |
Foto: João Relvas/Lusa |
Kátia Catulo
Rui Freire, 32 anos,
licenciado em Marketing, reside em Almada e está desempregado. Elsa Henriques,
49 anos, vive em Ponte de Sor e é professora do 1.o ciclo. Dois portugueses sem
ilusões. "Esta greve não vai mudar nada." Servirá quando muito para
mostrar descontentamento colectivo. "O que não é pouco", avisa Rui.
De resto, ambos já estão a pensar no dia seguinte. O dia seguinte que a troika
impôs e que o governo já começou a pôr em prática. Cortes nos salários, pensões
e subsídios, mais impostos, menos feriados, mais horas de trabalho, menos
crédito, novas regras para despedir, mais desemprego, menos serviços de saúde,
transportes ou educação.
O futuro mete medo. Ainda há
pouco tempo havia hipermercados ao fim-de-semana, banqueiros a emprestar
dinheiro para comprar casa, mudar de carro, trocar de sapatos, gozar férias. E
de repente deixou de ser assim. De repente não. Não foi de supetão que os
portugueses souberam que tinham de mudar de vida, avisa o historiador Rui
Ramos: "A ideia de que fomos apanhados de surpresa é uma ficção
confortável para os que querem legitimar as queixas." Ninguém pode dizer
que apanhou um choque de realidade, defende o investigador: "Há mais de um
ano que se fala em contenção." Começou na Primavera de 2010, com a Grécia,
continuou no Outono, com os Programas de Estabilidade e Crescimento de José
Sócrates e continua o seu percurso com os planos de austeridade de Passos
Coelho.
Tanto assim é que a
"expectativa dos portugueses está a mudar", explica o historiador. E
não é de agora, diz a professora de Ponte de Sor. Os tempos das vacas magras
vêm dos primeiros anos desta década: "Menos idas aos restaurantes, mais
marcas brancas, menos roupa, menos carne e peixe." Novos reajustamentos
terão de ser feitos agora que se sabe que os subsídios de Natal e de férias e
também o reembolso do IRS deixaram de servir para pagar a inscrição anual da
faculdade do filho a estudar em Lisboa, o imposto do carro e da casa:
"Terei de cortar mais no mesmo. Mesmo assim não sei se vai chegar."
Há uma certa "angústia" que Elsa não consegue evitar ao dar-se conta
de que sendo divorciada terá de continuar a suportar sozinha a educação do
filho, "que é o que mais importa". Se a professora conseguisse
libertar-se uns instantes dessa angústia, talvez pudesse entender o que quer
dizer o psiquiatra Álvaro de Carvalho ao avisar que em situações de crise o
primeiro momento é de angústia. Mas o segundo momento "vai permitir
descobrir formas de reequilibrar os nossos níveis de satisfação", diz o
coordenador nacional para a saúde mental. Foi assim no passado, será assim no
futuro.
Resistência
Por mais que os tempos se
tornem complicados, haverá sempre um instinto para resistir. "Os dados que
eu conheço vão no sentido de as pessoas encontrarem formas de sobreviver, mas também
mecanismos espontâneos de melhorar a sua vida", conta o psiquiatra. Somos
peças de um puzzle que, quando nos sentimos desencaixados, se movimentam até
encontrar um novo lugar confortável.
Quem tem uma visão histórica
conseguirá o distanciamento para concluir que as crises seguem um padrão,
apesar de não serem todas iguais. "Recordemos a Europa do século xx, que
atravessou duas guerras mundiais. Na altura houve grandes estudos sobre o
perigo de eventuais revoltas sociais que acabaram por nunca acontecer. É o medo
do futuro que leva as pessoas a adaptarem-se depressa", esclarece o
historiador Rui Ramos.
Incertezas
Depressa, mas com uma ressalva
– adverte o investigador. O ritmo de adaptação está intrinsecamente ligado ao
grau de incerteza. "A dúvida de não saber a que ponto vai chegar pode
tornar este processo de adaptação insuportável." Será preciso explicar o
tempo que vão durar as medidas de austeridade e os efeitos que irão provocar.
Caso contrário, avisa Rui Ramos, é o mesmo que ir ao médico, sair do
consultório com um remédio amargo que causa náuseas e tonturas como efeitos
secundários, mas sem garantias de que no final há cura para a doença: "São
precisas provas de que ao seguirmos esta terapia obteremos resultados.
Precisamos de soluções, que não são fáceis, reconheço, mas têm de surgir num
quadro europeu."
Soluções que mais não são que
"perspectivas de futuro para as famílias", alerta Paulo Pereira de
Almeida, presidente do Observatório Português de Boas Práticas Laborais. Só
assim será possível acreditar nos "projectos colectivos de Portugal e da
União Europeia". O que acontece é que tanto em Portugal como noutros
países "está enraizado um sentimento de injustiça laboral e social que
advém das crescentes desigualdades entre classes, concretamente nas sociedades
europeias e norte-americanas", diz o sociólogo.
Efeito em cadeia
Do ponto de vista económico,
explica o economista Pedro Pita Barros, os sucessivos planos de austeridade
mais não fazem que enfraquecer a "credibilidade à definição de políticas
económicas, contribuindo para as tornar ainda mais ineficazes. Se se tornam menos
eficazes, é preciso maior intensidade na sua utilização". Uma reacção em
cadeia que acaba por ter um desfecho previsível: "Ou seja, as expectativas
colectivas de maior depressão económica acabam por de certa forma se
auto-cumprir", antevê o professor da Universidade Nova de Lisboa.
Ver as oportunidades que esta
crise pode trazer é uma capacidade que talvez só os cientistas consigam ter:
"Num país como o nosso, em que a norma é esperar que o Estado resolva
todos os problemas, a actual situação das contas públicas vai obrigar a que
essa espécie de norma social se tenha de alterar." As crises são terrenos
férteis para mudar rotinas e mentalidades, mas não acontecem sem compromissos,
alerta Pita Barros: "Desde que aceitemos que não vamos fazer mais do mesmo,
em termos de actividade económica podemos dar a volta por cima."
Andar para trás
Quem se sente encurralado
entre desemprego, cortes e poupanças terá maior dificuldade em distanciar-se do
presente para descobrir que o futuro pode representar uma nova etapa.
"Esta crise obrigou-me a regressar à casa dos meus pais", conta Rui
Freire. O que mais lhe custa é cruzar-se com um amigo e confessar: "Voltei
para casa da mamã", desabafa o desempregado, que no último ano e meio nem
sequer consegue fazer biscates como produção de eventos, que já foram dando
para sobreviver. Regressar ao velho quarto e encontrar um vestígio da
adolescência num velho poster de Bon Jovi só o deixa mais desanimado:
"Sinto que estou a andar para trás."
Um dia depois da greve é cedo
para Rui Freire querer ouvir aos pais que "vai tudo correr bem".
Esperemos que daqui a uns tempos venhamos todos a dar razão ao economista Pedro
Pita Barros: "Já resistimos a outras crises, esta também passará. Mesmo
com a crise, ainda estaremos a viver melhor que há 30 anos. Será duro porque já
vivemos melhor, mas não é uma questão de extinção do país."
Título e Texto: Kátia Catulo, jornal “i”,
25-11-2011
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-