sábado, 26 de novembro de 2011

O dia a seguir à greve. É mau, vai ficar pior mas depois passa


Foto: João Relvas/Lusa

Kátia Catulo
Rui Freire, 32 anos, licenciado em Marketing, reside em Almada e está desempregado. Elsa Henriques, 49 anos, vive em Ponte de Sor e é professora do 1.o ciclo. Dois portugueses sem ilusões. "Esta greve não vai mudar nada." Servirá quando muito para mostrar descontentamento colectivo. "O que não é pouco", avisa Rui. De resto, ambos já estão a pensar no dia seguinte. O dia seguinte que a troika impôs e que o governo já começou a pôr em prática. Cortes nos salários, pensões e subsídios, mais impostos, menos feriados, mais horas de trabalho, menos crédito, novas regras para despedir, mais desemprego, menos serviços de saúde, transportes ou educação.
O futuro mete medo. Ainda há pouco tempo havia hipermercados ao fim-de-semana, banqueiros a emprestar dinheiro para comprar casa, mudar de carro, trocar de sapatos, gozar férias. E de repente deixou de ser assim. De repente não. Não foi de supetão que os portugueses souberam que tinham de mudar de vida, avisa o historiador Rui Ramos: "A ideia de que fomos apanhados de surpresa é uma ficção confortável para os que querem legitimar as queixas." Ninguém pode dizer que apanhou um choque de realidade, defende o investigador: "Há mais de um ano que se fala em contenção." Começou na Primavera de 2010, com a Grécia, continuou no Outono, com os Programas de Estabilidade e Crescimento de José Sócrates e continua o seu percurso com os planos de austeridade de Passos Coelho.
Tanto assim é que a "expectativa dos portugueses está a mudar", explica o historiador. E não é de agora, diz a professora de Ponte de Sor. Os tempos das vacas magras vêm dos primeiros anos desta década: "Menos idas aos restaurantes, mais marcas brancas, menos roupa, menos carne e peixe." Novos reajustamentos terão de ser feitos agora que se sabe que os subsídios de Natal e de férias e também o reembolso do IRS deixaram de servir para pagar a inscrição anual da faculdade do filho a estudar em Lisboa, o imposto do carro e da casa: "Terei de cortar mais no mesmo. Mesmo assim não sei se vai chegar." Há uma certa "angústia" que Elsa não consegue evitar ao dar-se conta de que sendo divorciada terá de continuar a suportar sozinha a educação do filho, "que é o que mais importa". Se a professora conseguisse libertar-se uns instantes dessa angústia, talvez pudesse entender o que quer dizer o psiquiatra Álvaro de Carvalho ao avisar que em situações de crise o primeiro momento é de angústia. Mas o segundo momento "vai permitir descobrir formas de reequilibrar os nossos níveis de satisfação", diz o coordenador nacional para a saúde mental. Foi assim no passado, será assim no futuro.

Resistência
Por mais que os tempos se tornem complicados, haverá sempre um instinto para resistir. "Os dados que eu conheço vão no sentido de as pessoas encontrarem formas de sobreviver, mas também mecanismos espontâneos de melhorar a sua vida", conta o psiquiatra. Somos peças de um puzzle que, quando nos sentimos desencaixados, se movimentam até encontrar um novo lugar confortável.
Quem tem uma visão histórica conseguirá o distanciamento para concluir que as crises seguem um padrão, apesar de não serem todas iguais. "Recordemos a Europa do século xx, que atravessou duas guerras mundiais. Na altura houve grandes estudos sobre o perigo de eventuais revoltas sociais que acabaram por nunca acontecer. É o medo do futuro que leva as pessoas a adaptarem-se depressa", esclarece o historiador Rui Ramos.

Incertezas
Depressa, mas com uma ressalva – adverte o investigador. O ritmo de adaptação está intrinsecamente ligado ao grau de incerteza. "A dúvida de não saber a que ponto vai chegar pode tornar este processo de adaptação insuportável." Será preciso explicar o tempo que vão durar as medidas de austeridade e os efeitos que irão provocar. Caso contrário, avisa Rui Ramos, é o mesmo que ir ao médico, sair do consultório com um remédio amargo que causa náuseas e tonturas como efeitos secundários, mas sem garantias de que no final há cura para a doença: "São precisas provas de que ao seguirmos esta terapia obteremos resultados. Precisamos de soluções, que não são fáceis, reconheço, mas têm de surgir num quadro europeu."
Soluções que mais não são que "perspectivas de futuro para as famílias", alerta Paulo Pereira de Almeida, presidente do Observatório Português de Boas Práticas Laborais. Só assim será possível acreditar nos "projectos colectivos de Portugal e da União Europeia". O que acontece é que tanto em Portugal como noutros países "está enraizado um sentimento de injustiça laboral e social que advém das crescentes desigualdades entre classes, concretamente nas sociedades europeias e norte-americanas", diz o sociólogo.

Efeito em cadeia
Do ponto de vista económico, explica o economista Pedro Pita Barros, os sucessivos planos de austeridade mais não fazem que enfraquecer a "credibilidade à definição de políticas económicas, contribuindo para as tornar ainda mais ineficazes. Se se tornam menos eficazes, é preciso maior intensidade na sua utilização". Uma reacção em cadeia que acaba por ter um desfecho previsível: "Ou seja, as expectativas colectivas de maior depressão económica acabam por de certa forma se auto-cumprir", antevê o professor da Universidade Nova de Lisboa.
Ver as oportunidades que esta crise pode trazer é uma capacidade que talvez só os cientistas consigam ter: "Num país como o nosso, em que a norma é esperar que o Estado resolva todos os problemas, a actual situação das contas públicas vai obrigar a que essa espécie de norma social se tenha de alterar." As crises são terrenos férteis para mudar rotinas e mentalidades, mas não acontecem sem compromissos, alerta Pita Barros: "Desde que aceitemos que não vamos fazer mais do mesmo, em termos de actividade económica podemos dar a volta por cima."

Andar para trás
Quem se sente encurralado entre desemprego, cortes e poupanças terá maior dificuldade em distanciar-se do presente para descobrir que o futuro pode representar uma nova etapa. "Esta crise obrigou-me a regressar à casa dos meus pais", conta Rui Freire. O que mais lhe custa é cruzar-se com um amigo e confessar: "Voltei para casa da mamã", desabafa o desempregado, que no último ano e meio nem sequer consegue fazer biscates como produção de eventos, que já foram dando para sobreviver. Regressar ao velho quarto e encontrar um vestígio da adolescência num velho poster de Bon Jovi só o deixa mais desanimado: "Sinto que estou a andar para trás."
Um dia depois da greve é cedo para Rui Freire querer ouvir aos pais que "vai tudo correr bem". Esperemos que daqui a uns tempos venhamos todos a dar razão ao economista Pedro Pita Barros: "Já resistimos a outras crises, esta também passará. Mesmo com a crise, ainda estaremos a viver melhor que há 30 anos. Será duro porque já vivemos melhor, mas não é uma questão de extinção do país."
Título e Texto: Kátia Catulo, jornal “i”, 25-11-2011

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