Carmo da Rosa
O enviado especial para Espanha e Portugal do
jornal (NRC) que assino na Holanda, tem um estilo muito peculiar que me agrada
quanto baste. Descreve a crise económica e outras grandes atribulações da moda
de forma diferente da maioria dos seus colegas. Não perde tempo com ódios
ideológicos, nem com teorias da conspiração e utiliza perfeitamente a técnica
do funil virado ao avesso. Parte sempre de uma situação estreita, prosaica, que
toda a gente reconhece, extrapolando lentamente para um nível mais amplo, o da
nação, do mundo. Mas de maneira que toda a gente acaba por perceber o complexo.
Até eu….
Merijn de Waal sobre a crise económica espanhola.
Mas podia muito bem ser a portuguesa. Ficando os problemas da península
Ibérica reduzidos a esta simples frase que muitos não querem ouvir: “desequilíbrio
entre rendimentos e despesas”.
Com contrato temporário não pode fazer greve
Enquanto os 12.000 habitantes de Valverde del
Camino dormem, já Júlio Ortiz às 5 da manhã está a pé e pronto para ir
trabalhar. Com um uniforme fluorescente vai empurrando um carro para recolha de
lixo pelas ruas da vila andaluza. Vai pela madrugada apanhando as laranjas que
caíram das árvores, vidros e garrafas espalhadas nos locais onde param os
jovens. É um trabalho pesado para uma pessoa de 53 anos de idade.
Mas quando estiver pronto, por volta do meio-dia,
então é que começa verdadeiramente o seu dia de trabalho: uns biscates a negro
na economia paralela – mas é com este trabalho que realmente ganha algum: toma
conta de vizinhos com idade avançada. Júlio Ortiz é funcionário da câmara, mas
a câmara está falida. A câmara está endividada até ao pescoço e desde a crise
da imobiliária em Espanha, seguida pela crise do euro, ninguém mais lhe quer
emprestar dinheiro. O orçamento para este ano esgotou-se em Junho. Mais de uma
centena de habitantes que figuram nas folhas de pagamento da vila, têm cinco
meses de salário em atraso.
Mas enquanto outros funcionários da câmara ficam
em casa como forma de protesto, Ortiz continua a fazer o seu trabalho. É que
ele, ao contrário dos funcionários efectivos, tem um contrato temporário e pode
ser despedido a qualquer momento. “Não me posso permitir perder este
emprego. Quando a câmara conseguir um empréstimo junto do governo regional ou
do estado paga-me tudo de uma vez” diz ele. “E onde é que eu
vou arranjar outro emprego?”.
Mas não é só a câmara que está falida, as pequenas
empresas locais que trabalhavam para ela esperam um ou mais anos pelo pagamento
das suas facturas. Esta situação causou uma reacção em cadeia de calotes e
falências e sugou o último crédito em Valverde del Camino.
Na Grécia e na Itália a crise do euro originou
mudanças caóticas de poder. Sob a pressão dos mercados e da Europa os governos
eleitos tiveram que ceder o lugar a tecnocratas nomeados. Também em Espanha a
crise do euro deu origem a um câmbio político, mas aqui a mudança deu-se
através das urnas.
Depois da morte de Franco, em 1975, e do retorno à
democracia três anos depois, Espanha encontra-se numa encruzilhada. Ao
ingressar na Europa, para sair do seu isolamento e pobreza, o país correspondia
desta forma à tese de 1910 do filósofo espanhol Ortega y Gasset: Espanha é o
problema e a Europa a solução. A cada eleição a jovem democracia saía
fortalecida, a prosperidade triplicou e o país modernizou-se rapidamente. No
entanto, a participação no mais importante projecto europeu, o euro, deixou o
país financeiramente de rastos. Graças à entrada na união monetária europeia, Espanha
podia obter nos anos noventa crédito muito barato, e o resultado foi a explosão
da enorme bolha de sabão imobiliária que durante muitos anos era o motor da
economia. A partir de fins de 2007 que a economia espanhola se encontra em
queda livre: o país tem uma enorme dívida externa, altas taxas de desemprego e
poucas perspectivas de crescimento económico.
piscinas cobertas…. com crédito
A seguir à crise da dívida grega, os mercados
internacionais de capital ficaram bastante agitados e começaram a fechar a
torneira do crédito. Agora, para que Espanha continue a fazer parte da família
europeia, vai ter que ganhar de novo a confiança dos mercados internacionais.
Para isso o novo governo vai ter que tomar medidas tão rigorosas como os seus colegas
em Atenas e Roma, que já estão sob curatela.
Não é de espantar que os espanhóis tenham acolhido
com entusiasmo a nova prosperidade vinda da Europa, sobretudo numa vila
andaluza como Valverde del Campino. A Andaluzia foi precisamente a parte do país
mais abandonada no tempo de Franco. “Nos finais dos anos setenta ainda
não havia estradas alcatroadas. Vivia-se ainda numa época feudal”, diz-nos
Miguel Marquez, que até Junho deste ano era vereador de obras públicas. “Veja
agora a diferença. Veja agora os serviços de que dispomos”. Marquez é um
político do PSOE que até às últimas eleições municipais, em Maio, esteve no
poder em Valverde durante mais de trinta anos. No fim dos anos noventa a vila
sofreu enormes melhoramentos: dois pavilhões desportivos, uma piscina coberta,
uma casa da cultura, um centro de jovens, vários projectos de habitação social,
um parque de estacionamento subterrâneo e um novo parque industrial. O
conservatório, o teatro e a praça principal foram também completamente
restaurados.
A verdade é que a vila não tinha dinheiro para
estas coisas. Para a construção e manutenção de todas estas facilidades, a
administração da câmara foi obrigada a contrair enormes empréstimos. No auge da
construção imobiliária isso era bastante fácil: o crédito barato jorrava do
interior dos bancos. A população em massa comprava casas em bairros novos e a
administração local ganhava bastante com isso, outorgando autorizações de
construção e cobrando impostos. Além disso, a câmara de Valverde criou a sua empresa
imobiliária, a semi-estatal GIVSA, e apostou forte no jogo da pirâmide em que o
sector entretanto se tinha transformado. Em ligação com construtores e
promotores locais, comprava-se e vendia-se terreno. O dinheiro fácil vinha do
banco de poupança local, CAJASOL, que, como todas as ‘cajas’ em Espanha, estão
sob o directo controlo de políticos locais e regionais.
descomunal desequilíbrio entre rendimentos e
despesas
Esta prática deu origem a um aumento artificial do
valor dos imóveis, corrupção e um crescimento selvagem de bairros novos. E
encobriu durante muitos anos o descomunal desequilíbrio existente entre
rendimentos e despesas em municípios como Valverde. Só quando a bolha de sabão
imobiliária rebentou, é que se notou que a vila vivia muito acima das suas
possibilidades. Os 12.000 habitantes têm agora que arcar com uma dívida de 54
milhões de euros. Quase metade desta quantia é da responsabilidade da empresa
imobiliária GIVSA, que entretanto faliu porque se encontrava a braços com uma
enorme parcela para construção num momento em que se duvida que ainda tenha
algum valor.
Durante as eleições municipais de Maio passado, a
população de Valverde votou em massa no candidato do centro-direita (Partido
Popular). Nas últimas eleições parlamentares verificou-se o mesmo escrutínio: o
PP teve 60% dos votos e o dobro dos socialistas, que foram mais uma vez
severamente punidos nas urnas pela população. O governo socialista de Zapatero
não teve em 2004 a coragem política para fazer vazar controladamente a bolha de
sabão imobiliária.
“Nós elevamos o nível do povo, mas eles não se
sentem agradecidos”,
afirma o ex-vereador de Valverde, Miguel Marquez, enquanto dobra propaganda
eleitoral juntamente com voluntários na sede do PSOE. “Nós tínhamos um
atraso de 20, trinta anos em relação ao resto da Europa e fomos demasiadamente
sôfregos na tentativa de recuperação”, é a análise de um voluntário. “Agora
vamos ter que retroceder. Mas até que ponto? Isso é a grande inquietação das
pessoas.” A vereadora Mari Carmen acrescenta: “Nós pensávamos que
éramos ricos. Mas agora que a ilusão se tornou visível, as pessoas deixaram de
votar em nós, votam na direita, na esperança que eles façam voltar o tempo das
vacas gordas.”
aeroportos onde aterra apenas um voo por semana
A derrota do PSOE num baluarte vermelho como a
Andaluzia tem um grande significado histórico. “Valverde sempre foi uma
vila de esquerda,com muita indústria mineira e um movimento sindical bem
organizado.” explica Juan Castillo, bibliotecário que se ocupa do arquivo
municipal. “A vila sofreu muito durante a Guerra-Civil e mais tarde
teve a repressão franquista que se seguiu”. No seio das famílias de
esquerda isto deu origem a uma aversão quase genética em relação à direita.
Principalmente nas gerações mais velhas. O facto de Valverde em Maio ter virado
completamente a casaca, é considerado pelo bibliotecário como positivo. “Para
as gerações mais novas o passado sangrento tem menos importância. Viraram a
página da história. O mais importante agora é pão em cima da mesa.”
Juan Castillo, que se considera de esquerda, é
bastante crítico em relação ao governo dos socialistas dos últimos trinta anos.
Ele não acredita que as recentes construções de novos bairros tenham sido
feitas para melhorar a situação dos habitantes. “Sobretudo nos últimos
anos, tratava-se apenas de manter o poder. Todos os anos a administração surgia
com um novo projecto faraónico para mostrar que a vila ia de vento em popa”. Mas
isto era um padrão que ocorria em toda a Espanha, e não apenas em municípios
socialistas. Em localidades onde a direita governava, também as câmaras se
endividavam na construção de projectos de prestígio. Em regiões onde o turismo
é quase inexistente foram inaugurados aeroportos onde agora aterra apenas um
voo por semana. Pequenas cidades construíram museus e salas de concerto que
custaram milhões de euros. Cada aldeia tinha que ter o seu pavilhão desportivo
ou piscina. Construiu-se uma linha de comboio de alta velocidade entre duas
capitais de província que passados alguns meses teve que ser desmantelada,
porque viajavam apenas nove pessoas por dia.
mudar de telefone portátil cada meio ano
Não há dúvida os espanhóis abraçaram com
entusiasmo o consumismo. Milhões mudaram-se para habitações mais amplas nos
arredores das cidades. Adquirir uma casa de praia ou de campo tornou-se comum
na classe média. Assim como passar os sábados à tarde em centros comerciais
munidos de cartão de crédito, ou mudar de telefone portátil cada meio ano.
Comer fora em dias de semana tornou-se normal. Os alemães, que desde o início
da crise do euro se queixam do esbanjamento nos países do sul da Europa,
encontraram em Espanha um excelente mercado para os seus Mercedes e BMW’s.
Agora que a crise já dura há três anos, os espanhóis começam a sentir as
dívidas como um pesado fardo que vão ter que suportar. Os problemas
relacionados com incumprimento de pagamento aumentam: Por dia a banca confisca
300 casas. Há 1,4 milhões de famílias em que todos os membros estão
desempregados.
“É compreensível que tenhamos caído nesta
armadilha”, diz-nos
o bibliotecário Juan Castillo. “Vínhamos de um período negro, sem
qualquer tipo de luxo. De repente podíamos comprar tudo o que desejávamos - é
muito difícil de resistir. Imaginávamos que esta situação nunca mais acabaria.
Mas na realidade estávamos a caminhar em direcção ao abismo sem nos darmos
conta, porque a paisagem era lindíssima.”
medidas necessárias para que haja crescimento
económico
Para evitar o abismo Espanha está perante um
enorme desafio. Vai ter que reduzir a enorme dívida pública, e a das empresas,
e a dos bancos. Mas cuidado, a política de rigor não pode empurrar
demasiadamente a economia para uma recessão. Um exercício de equilíbrio que só
pode ter sucesso se o país tomar as medidas necessárias para que haja
crescimento económico. Mas nem todos os eleitores percebem isso. José Manuel
Gonzalez, agente da polícia, diz que votou no PP porque tem esperanças que com
um governo de direita em Madrid, “o nosso presidente da câmara vai ter
mais portas abertas.” Este polícia e dezasseis colegas, assim como
todos os funcionários de Valverde, têm cinco meses de salário em atraso. No mês
de Setembro o corpo inteiro da polícia deu baixa por motivo de doença. Como a
polícia não pode fazer greve, esta foi a única maneira de protestar.
Não é certo e seguro que a alternância política em
Madrid faça com que o dinheiro volte a jorrar em Valverde. O líder do PP,
Mariano Rajoy, promete restabelecer a confiança na economia, mas isso vai
demorar o seu tempo. E o novo líder espanhol, é primeiro-ministro de um país em
que os municípios, regiões e províncias são já em grande parte governados por
militantes do seu partido. O que certamente pode facilitar a implementação de
reformas, mas o presidente da câmara de Valverde não vai ser o único a bater à
porta de Mariano Rajoy com pedidos de apoio financeiro.
“Já não há mais dinheiro em Espanha. As pessoas
que julgam que com Rajoy na Moncloa a torneira financeira vai novamente
abrir-se, enganam-se”, afirma
Manuel Becerro em sua casa, no centro de Valverde. Ele é filho do primeiro
presidente da câmara socialista que a vila conheceu no final dos anos setenta.
Como correspondente do diário nacional de direita El Mundo está bem informado
sobre a política local.“Nas vésperas das eleições municipais o anterior
presidente da câmara socialista tentou arranjar dinheiro junto da administração
regional, que estava totalmente nas mãos dos socialistas. O facto de nada ter conseguido
prova que não há mais nada para ninguém.”
a câmara municipal não pode voltar a ser a maior
fonte de emprego da vila
Assim como Rajoy, a nova presidente da câmara de
Valverde, Loles Lopez, promete restabelecer a confiança com reformas e poupança: “Esta
vila sempre foi muito empreendedora com a sua indústria de calçado e de
móveis.” Mas vai já avisando que “a câmara municipal não pode
voltar a ser a maior fonte de emprego da vila.” Entretanto os
comerciantes e industriais da vila sobrevivem com grandes dificuldades. Também
porque há anos que esperam que a câmara pague as suas facturas. E para pagar as
suas dívidas a câmara ainda não sabe de quanto é que vai aumentar os impostos
camarários. Loles Lopez diz-nos que os seus funcionários e economistas estão a
estudar o problema. Por seu lado ela encontra-se em negociações com a banca
para encontrar a melhor forma de pagar as dívidas da câmara. Sim sim, a opção
quitação parcial da dívida já foi abordada. Uma quinta parte dos 9 milhões de
euros do orçamento são para pagar os juros de empréstimos.
Loles Lopez acredita que é possível manter o mesmo
nível de serviços com menos gente. Mas nos últimos seis meses muitos serviços
sociais tornaram-se mais sóbrios, ou mais caros. A contribuição dos pais para o
pagamento da creche duplicou. O museu sobre a indústria mineira só abre a
pedido. As obras nos esgotos de uma das principais ruas da vila não puderam ser
concluídos, a calle de la Calleja está há um ano sem alcatrão. É muito provável
que a câmara não possa pagar à empresa que explora a piscina coberta, diz um
funcionário que prefere ficar anónimo.
Título, Imagem, Texto (formatação original): Carmo da Rosa, no blogue "FIEL INIMIGO", 27-11-2011
Colaboração: Ari (Resistência Democrática)
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