terça-feira, 22 de novembro de 2011

Transportes públicos: um elogio interessado

Alberto Gonçalves
Não me parece estranho ou sequer incoerente que a encarniçada defesa dos transportes públicos seja liderada, em larga medida, por gente que nunca usa os transportes públicos. Eu próprio não ponho os pés num autocarro desde que tirei a carta (no glorioso ano de 1988), recorri pela última vez ao metropolitano de Lisboa em 1998 e desfrutei do metro do Porto uma ocasião nos idos de 2006. No resto, utilizo com frequência anual (se tanto) a CP para descer à capital e a TAP para subir a Nova Iorque, escolhas devidas à falta de alternativas e não a qualquer preferência ou tara. Ainda assim, sinto-me inclinado a gritar na rua em prol dos transportes públicos. Ou num recinto fechado, se fizer frio.

Autocarro da Carris, Lisboa
Antes, porém, permito-me um esclarecimento. Para o meu gosto, os transportes públicos sofrem de um grave problema: são públicos. Entramos num veículo do género e, de repente, achamo-nos rodeados de desconhecidos que não queremos conhecer. Num certo sentido, os transportes públicos constituem o equivalente de uma imaginária residência pública, moradias ou apartamentos patrocinados pelo Estado e abertos a todos os que desejassem ocupá-los mediante o preço de um bilhete comum ou de um "passe" com desconto. Percebo, e aplaudo, a serventia dos abrigos caritativos e dos lares de idosos, mas enquanto os rendimentos e a idade me deixarem pretendo continuar a ver os episódios de The Office sem ter de ceder o lugar no sofá da sala a uma senhora grávida (com a eventual excepção da minha mulher, caso haja um imprevisto). E pretendo continuar a usufruir do quarto de dormir sem o partilhar com dois escriturários, um advogado preocupado com o "aquecimento global", a velhinha que vende fruta no mercado e sete adolescentes agarrados ao telemóvel (a minha mulher, que me mata se eu não fizer a ressalva, é novamente a excepção).

Absurdo? Claro que sim. Não é à toa que nos empenhamos por manter íntimo o que exige intimidade, um princípio nobre que vale para quando estamos quietos e, por maioria de razão, deveria valer para quando nos deslocamos. Se as habitações ditas "sociais" estabelecem limites de propriedade e asseguram o recato de quem nelas mora (sempre que lhes apetece confraternizar, os locatários andam à pancada nas escadas), custa um bocadinho compreender à primeira a existência de transportes sem direito a essas regras basilares de civilidade. Não custa compreender à segunda. 

Julgo não sobrarem dúvidas de que o único meio de locomoção capaz de garantir a plena independência dos cidadãos é o automóvel particular, afinal o equivalente exacto das casas particulares. Embora caro na compra e no sustento, graças à perseguição fiscal que lhe é movida por um Estado naturalmente avesso à emancipação das massas, o automóvel compensa as desvantagens através de um rol fulminante de proezas: não obriga a convívios inoportunos; não depende de horários pré-determinados; não amua por decreto da CGTP; possui, pelo menos o meu, uma selecção musical imaculada. Em matéria de qualidade, pois, o automóvel é insuperável. Já em matéria de quantidade, seria bom que não o fosse.

Autocarro da SCTP, Porto
De modo a realizar as suas potencialidades, o transporte privado necessita de uma comezinha coisa: espaço. Na hipótese, não tão remota, de os quatro ou cinco milhões de portugueses encartados se sentarem ao volante e saírem simultaneamente estrada fora, as estradas ficariam congestionadas num ápice e os automóveis reduzidos a tendas de campismo metálicas, para cúmulo desprovidas de avançado ou barbecue. Não é uma ideia agradável. É, no entanto, a ideia que justifica a importância dos transportes públicos, vitais para escoar a parcela da população que, na ausência de autocarros e carruagens, optaria conscientemente pela viatura individual e inadvertidamente pelo caos colectivo. Em suma, o automóvel só constitui um fator de autonomia (note-se a semelhança lexical) se houver criaturas dispostas a abdicar desta em favor das grilhetas da Carris, dos STCP e etc. - e se houver STCP, Carris e etc. Eis um exemplo de liberdade que começa onde termina a liberdade dos outros.

É por isso que não me surpreende ver políticos que apenas penetram um comboio em inaugurações ou campanhas a protestar a anunciada reestruturação dos transportes das áreas metropolitanas: muito humanamente, receiam que a redução das opções públicas lhes perturbe, por força do tráfego, as deslocações privadas. E se os políticos, que beneficiam de motorista, se queixam, eu, chofer de mim mesmo, queixo-me com o dobro da legitimidade.

O que não arrisco é misturar o queixume com os apelos às greves no sector. Além de as "paralisações" significarem dias de balbúrdia nos IP, IC e EN do País, chegará o dia em que, de "paralisação" em "paralisação", os financeiramente esfarrapados transportes públicos arranjarão uma tetraplegia definitiva. Ou, como disse o ministro da Economia em momento de sensatez, vai tudo à falência e perdem-se milhares de empregos. E inúmeros utentes perderão o autocarro. E eu, retido num engarrafamento, perderei a paciência.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, nº 393, 10 a 16-11-2011

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