Edson Athayde
“Prefiro ser/Essa metamorfose
ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo
Quero dizer/Agora o oposto do que eu disse
antes
Eu prefiro ser/Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião formada sobre
tudo
Sobre o que é o amor/Sobre eu, que nem sei
quem sou
Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
Se hoje eu lhe odeio amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor, lhe tenho horror
Lhe faço amor, eu sou um actor”
Raul Seixas
O que era para ser uma happy
hour no Bairro Alto acabou por revelar-se numa metafísica epifania. Na parede
do bar, em meio a uma colagem de fotos e recortes, uma frase escrita num papel
saltou para o meu colo: “Penso mas não existo”.
Não me interessa o que queria
dizer quem a escreveu (se é que queria afirmar alguma coisa relevante). O que
eu apontei mentalmente é que valia a pena falar sobre uma realidade
inconveniente: tornou-se moda o separar entre o acto de “pensar” e estado
físico de “existir”.
“Cogito, ergo sum”. “Penso,
logo existo”. Já foi mais fácil, já foi mais fácil. René Descartes deve estar a
revirar-se no túmulo.
Outrora (quando “outrora”
ainda era uma palavra que se usava) as pessoas pensavam um pouco mais antes de
falar ou escrever. O que elas diziam, seja numa tertúlia com os amigos, numa
carta ou num artigo de jornal, deveria representar o que elas eram em palavras.
Hoje não é bem assim. Há muito efeito carneirada por aí. Alguém diz “mata” o
outro complementa “esfola” (sem, ao menos, perguntar quem é que deve ser morto
ou o motivo do linchamento).
Odiar por odiar é do mais
simples que há em tempos em que ninguém tem paciência para ouvir argumentos.
Pontos de vista viraram bandeiras. Um, para julgar-se certo, precisa acreditar
(num acto fé, posto que não necessita de provas) que os outros estão errados.
É uma sociedade a preto e
branco. Uma sociedade autista. Do pensamento único ou de grupo, do raciocínio
das massas. Nós contra eles. Eles, claro, contra nós. E todos contra todos.
Quando foi, em que esquina da
vida, que perdemos o hábito de duvidar das nossas próprias certezas? De
procurar alternativas para os nossos conceitos? De evitarmos ser como os
espelhos (que reflectem sem pensar)?
Na política, já não há
divergências, há teatro. Os actores políticos movem-se no palco com deixas
ensaiadas, são personagens coerentes no pior dos sentidos, previsíveis, mais
preocupados em passar a imagem que estão a fazer a coisa certa do que em fazer
a coisa certa para aquele determinado momento. E o autor daquelas falas (no
parlamento, nas conferências de imprensa, nos comícios), pelamordedeus, se
perder o emprego não servirá nem para escrever bulas de remédio.
Nas amizades, o sistema é de
tolerância zero: “tens que ser aquilo que eu quero; tens que fazer aquilo que
eu mando; tens que gostar daquilo que eu gosto; tens que ouvir as músicas que
eu curto; tens que concordar com aquilo que eu digo, porque eu já sou, faço,
gosto, ouço, curto aquilo que alguém, sei lá quem, definiu como o certo. Se não
aceitas, no problem, basta trocares de grupo, ninguém dará pela tua falta”.
Proponho, então, amigo, um
minuto de dúvida por dia como uma dieta sadia. 60 segundos diários de
questionamentos (sérios ou divertidos, tanto faz, que o riso honesto também
pode fazer parte da cura) sobre os outros e sobre si mesmo. Ao fim de menos de
dois meses, terá quase uma hora de raciocínio original. Não parece muito, mas é
mais do que estamos a nos habituar. É isso o que eu penso.
Ou não, só para ser
(in)coerente.
Título e Texto: Edson Athayde, revista Sábado, 23-11-2011
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