Aparecido Raimundo de Souza
OLHANDO DE LONGE PARA A CALÇADA do outro lado da
avenida, vejo uma multidão considerável se movimentando, de um lado para outro,
num vaivém interminável. Ao lado, numa espécie de cobertura de cimento, uma
dupla, em particular, me chama a atenção. Sentados, um de frente ao outro,
dividindo o mesmo banco, dois cidadãos conversam à sombra de uma árvore
frondosa.
O mais jovem, veste uma camisa de manga curta com
a estampa de Che Guevara e, logo abaixo da efígie, a frase “Hay que
endurecerse, pero sin perder la ternura, jamás”. De resto, usa calça jeans
desbotada e tênis.
O idoso está de óculos. Traz um olhar de
condescendência paterna, a alvura da pele perdida e todo o resto revelando
músculos flácidos sob a pele enrugada. Esconde a sua magreza, num terno branco
antigo, camisa amarela e gravata borboleta. Comboia um violão ao colo, todavia,
não o toca. Noto mais. Só o mais jovem fala e, ao fazê-lo, gesticula enquanto o
que segura o instrumento, não se mexe.
Visto daqui de onde me encontro, parece
completamente estático. Meio cabisbaixo e absorto se limita a escutar seu
interlocutor, sem, no entanto, mostrar algum tipo de reação. O que tagarela, por sua vez, não economiza
gestos, ao contrário, espavora, intimida, aterra, ora levantando os braços, ora
indicando alguma coisa para as bandas do mar imenso que se perde no azul do céu
ensolarado. De pronto, encafifo, avexo e me perturbo.
Penso da seguinte forma. Raciocinem comigo. Por
mais que uma criatura fale pelos cotovelos, não é normal, menos ainda,
admissível, que aquele, que o escuta, deixe que seus ouvidos se transformem em
penico. Algum tipo de reação deve ser posto em prática, para coibir que o
falador inveterado lhe dê folga, e o mais importante, que o pobre infeliz que,
pego para Cristo, exerça o direito de contradizer interagindo e tendo a chance
de responder.
Porém, naqueles simpáticos cavalheiros, tal coisa
não acontece. Somente um se mantem matraqueando euforicamente. O outro, com o
violão debaixo do braço, segue atulhado, emudecido por um atravanco desanimado,
como se houvesse perdido a voz.
Curioso, atraído pelo ineditismo do quadro,
resolvo apreciar a ambos mais de perto. Nessa de bisbilhotar, matar a
curiosidade aflorada à epiderme, parto para a faixa de pedestres semaforada
logo adiante, com o objetivo de cruzar o movimento, àquela hora da manhã bastante
intermitente.
Espero, pois, pelo sinal que me levará ao outro
limite de espaço, sem atropelos e sem correr riscos de um açodamento
desnecessário. Nunca se sabe. Os motoristas, hoje em dia, andam distraídos e
não só isso, atarantados, impacientes, precipitados e trapalhados. Dessa forma,
enquanto aguardo o verde, procuro não perder os prezados de vista.
Eles continuam sem sair do lugar. Do mesmo jeito,
em igual posição. O bem vestido, quieto, e o destrambelhado a mil, fala,
braceja, mimica, acena em várias direções, agitado. Galgo, finalmente, o lado
esperado. Meu almejo não é outro, senão o de me aproximar o mais que possa para
ver se capto o que o sujeito sem travas ou obstáculos despeja no coitado do
senhorzinho. Pelo menos, se ele desse um basta, tocando alguma coisa... sabe-se
lá, o desmiolado, e “sem noção”, de repente, engatasse um armistício
momentâneo. Nessa curta viagem cruzo com atravancos os mais diversos.
Entre eles, pessoas correm, outras patinam.
Bicicletas se emparelham em alta velocidade. Crianças de patinetes e skates,
com seus genitores gritando, formam uma espécie de praça de guerra. Mamães com
seus bebês confortavelmente acondicionados passeiam em luxuosos carrinhos.
No emaranhado de viventes, topo, igualmente, com
casais de pombinhos de mãozinhas dadas. A terceira idade, escoltada nesses
aparelhos de academia, abertos em franca atividade paralela, pratica os mais
diversificados exercícios. Enfim, a vida plena flui aos borbotões, nas mais
metamorfoseadas formas de expressão.
Consigo me posicionar a uma distância prudente.
Não miro diretamente as figuras num tête-à-tête, para não tomarem conhecimento
de minha indecorosa intromissão. Não seria decoroso. Além do que, não me
sentiria confortável se me flagrassem bisbilhotando. De costas, apuro os
ouvidos. Apesar da fluência contínua, do vento soprando da praia, do burburinho
dos que vem e vão, capto lograr o diálogo (ou será monólogo?) do impertinente
que não para de falar.
“Minha vontade – diz a esta altura, o varão –
será a de pular na frente de um carro. Aqui mesmo. Sei que atrapalharei o
trânsito, e causarei sérias dores de cabeça para muita gente. Talvez faça isso,
ou coisa pior.”
O que será pior, me pergunto, enquanto o senhor
ensaia dedilhar uma melodia em seu violão? “– Eu diria que pular da ponte logo
ali à frente, seria maneiro, quero dizer, estranho. No mínimo estranho! Um
próspero na minha idade, aos trinta, mulher, duas filhas maravilhosas, Karla
com um ano e Andressa com três meses. Minha esposa é linda. Parece uma boneca.
Para o senhor ter ideia, lembra aquela atriz Emanuelle Araújo...”.
“O senhor conhece a Emanuelle Araújo? Acredito
que não! Não importa. Se eu entrar agora num banheiro para tirar a água do
joelho, alguém certamente me penhorará o bilau. Se não me pegarem coisa de
maior monta, como o fiofó. Nem me pergunte. Pela sua cara, acho que ensaiaria
me questionar. Quanto devo, na praça? – Muito! Acredite, senhor. Muito! Para
agiotas nem queira saber. Tenho pelo menos uns quatro nos meus calcanhares.
Entre outros credores, devo à padaria, ao mercado, ao açougue, ao seu Miguel da
farmácia, ao doutor Hélio Bicudo, o médico que fez o parto da minha Vanessinha.
Devo ao doutor Jurandir advogado que cuida de um maldito inventario que não sai
nem por reza braba...”.
De fato, o senhor bem vestido do violão, não dá
um pio. Escuta calado, obsequioso, o seu companheiro desesperado, tagarelando
frases desconexas como um papagaio. Sem
esboçar qualquer tipo de oposição aos fardos abandalhados parecia ter no peito
um coração de pedra. Por conta disso, o zureta seguia a língua solta:
“Não sei mais o que fazer. Agiotas, cartões de
crédito vencidos, geladeira vazia, dispensa sem nada... vendi meu carro... o
dinheiro não deu nem para a saída. Puta que me pariu. Estou fu, fu de preto e
escuro. Tomei uma decisão. Vou pular da ponte. E vai ser agora. Desculpe lhe
tomar o tempo. Talvez estivesse compondo... vim atrapalhar... o senhor sabe...
entende, compreende, pela idade, sabe que estou no mato sem cachorro...”. Após
um sutil cumprimento com a cabeça, algo como o touché usado pelos esgrimistas
franceses, o viripotente escafedeu. Sumiu em meio ao dilúvio de cabeças que se
cruzavam num embolo disparatado.
Penso, nesse momento, que o ancião largaria o
instrumento e rebateria. Daria alguma resposta. Citaria algum versículo da
Bíblia. Nessas horas, um desses pequenos parágrafos operam milagres. Ajuda. Ou
aconselharia o amolado a procurar ajuda. Qual o quê! O velho continua insulso,
omisso, reprimido, dissimulado, escondido, embarafustado na sua cegueira,
aderido, chumbado, arrimado a seu pinho inseparável. Confesso, torci para que o
bom homem abrisse o bico e se manifestasse dando um conselho. NADA.
ABSOLUTAMENTE NADA!
Resolvi interferir. O rapaz, nessa hora, num
gesto inesperado, dá linha à pipa. Levanta mofino, acanhado e desabala, às
carreiras, para o lado da enorme passagem sobre o as águas pesadas e sem
medida. Eu ia me meter. Aliás, vou me
meter, chamar a atenção do coroa. “Por que não disse alguma coisa, meu prezado?
Deixou esse garoto -, perto de nós, é um garoto -, partir para o “se matar?” O
senhor não se recorda para tudo existe uma saída...?”.
Súbito, entretanto, quando me posiciono
frontispiciosamente para interpelar o velho percebo a pilhéria em que caí feito
um patinho. Me dou conta de um fato até então desconhecido, o que serviu para
aumentar a minha estupefação. Fico boquiaberto, sem ação. Os óculos do ancião,
não possuem lentes. No lugar delas, dois buracos. O terno preto, a camisa
amarela, a gravatinha borboleta, os sapatos, tudo é metálico. O violão é de
bronze e estanho. Uma plaquinha, sob o banco, do lado esquerdo de perna do
maduro, segue o padrão do mesmo material.
Dá conta de que o estatuado foi um compositor
famoso e viera a óbito há dois lustros.
Juntamente com seu pinho (fora transformado pela prefeitura), virara
transunto. Homenagem póstuma, a todos os seus fãs, amigos e consanguíneos.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza, jornalista. Da Lagoa Rodrigo de
Freitas, no Rio de Janeiro. 10-11-2017
Colunas anteriores:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-