Nome completo: Gabriel
Sérgio Mithá Ribeiro
Nome de Guerra: Mithá. Provém
do hindi e quer dizer doce.
Mithá é o sobrenome acarinhado
na família e proveniente do lado materno. O meu avô chamava-se Omar Mitha.
Nasceu em Jamnagar (Estado Gujarate, Índia), provavelmente originário do
Paquistão, justamente do Estado paquistanês Mitha, próximo do território indiano.
Pertencia à minoria islâmica em terra de hindus e emigrou da Índia para a África
nos inícios dos anos trinta, provavelmente em direção a uma das colónias
inglesas (Rodésia do Sul/Zimbabwe ou Rodésia do Norte/Zâmbia).
Suponho ter sido uma das
vítimas da Grande Depressão iniciada em Nova Iorque, em 1929. Mas como aportou
na costa moçambicana do Índico e pretendia rumar ao interior do continente em
direção às colônias inglesas, os portugueses, como chegaram primeiro que os
ingleses, ficaram com o litoral Atlântico e Índico, esse meu avô acabou por se
fixar do lado de cá da fronteira, ainda em Moçambique.
Levou com ele duas filhas,
depois enviadas para familiares fixados na Rodésia do Sul.
Solitário no lado moçambicano,
no Fingoè, interior da província de Tete, montou o seu negócio, construiu uma loja/casa
e casou-se com a minha avó materna, Mariamo Ismael Taíbo, miscigenada entre
africanos e gentes do Índico.
A minha mãe, Juleca Omar
Mithá, foi a primogênita (1934-2008). Não conheci esse avô materno do nome doce
por ter falecido em 1958. Quando a minha mãe, as suas duas irmãs e o seu irmão
mais novo foram registados pela então administração colonial portuguesa, em
Moçambique, o sobrenome passou de Mitha a Mithá. A nova sonoridade não ficou
pior e, mais não seja por isso, não foi opressão colonial.
Ou único problema de tal
linhagem materna é viver debaixo da ameaça do furor cancerígeno. Por aí estou
ferrado. Sempre que regressei a Moçambique depois de 1997 e pude ir ao Fingoè,
procuro a campa do meu avô e faço-lhe a devida homenagem.
Numa das ocasiões fui com o
meu tio, Ismael Mithá, falecido recentemente, que me mostrou os restos das
fundações da casa onde nasceram e viveram, o que então me emocionou.
Toda aquela terra fértil e próspera
para a agricultura e para os negócios foi simplesmente varrida do mapa pela
guerra civil entre comunistas (Frelimo) e tradicionalistas (Renamo) que gerou a
mais dramática hecatombe moçambicana de sempre, entre 1976/1977 e 1992. No
mínimo um milhão de mortos e uma destruição humana e material sem precedentes,
quando a guerra colonial anterior entre os portugueses e a Frelimo (1964-1974)
tinha matado cerca três mil militares e instigado o maior desenvolvimento de
sempre da colônia, apesar do chinfrim da esquerda orquestrada pelos soviéticos
e americanos progressistas. Não há palavras para o comunismo. Criminosos à
solta.
Onde e quando nasceu?
Nasci em Lourenço Marques [foto], no
extremo sul de Moçambique, em 1965. Era laurentino na origem. Os
revolucionários marxistas da Frelimo, em 1976, mudaram o nome da minha cidade
natal para Maputo. Passei a maputinho ou maputense. Alguns da velha cepa ainda
se indignam com o rebatismo. Mas não faz mal.
O meu pai nasceu na cidade da
Beira (1927-2018), no centro de Moçambique, um descendente de sírio e de uma
negra moçambicana. É a minha ascendência católica. A minha mãe é o meu lado
islâmico.
Como os pais e as avós
paternas mandavam formalmente, mas as mães e as avós maternas mandavam
efetivamente, fui batizado católico e cresci entre muçulmanos. Daí admitir que
serei para a vida católico-apostólico-muçulmano, tal como um dos meus irmãos,
meio a brincar para simplificarmos o que é sério.
Onde estudou?
Comecei a primária nas
periferias de Lourenço Marques, na escola primária do Bairro Professor Silva
Cunha, ainda no tempo colonial, em 1971. Com a radicalização da ditadura
comunista a partir de 1974-1975, ironicamente esse bairro onde morava passou a
chamar-se Bairro da Liberdade, época em que implementaram grupos dinamizadores
e organizaram a área residencial em unidades, quarteirões e células controladas
pelos camaradas do Partido-Estado-Frelimo, ao mesmo tempo que a população
branca debandava.
O novo poder moçambicano
garantiu uma liberdade muito apertadinha, como o colono nunca se havia atrevido
naquele mesmo bairro. Mas foi bom para eu passar a gostar de política e
perceber a razão da esquerda ser sinônimo de trapaça.
Depois, estudei, no ciclo
preparatório, na cidade de Maputo, numa escola antes chamada Escola
Preparatória Joaquim de Araújo que passou a Estrela Vermelha.
Em 1980, mudei-me de
Moçambique para Portugal onde recomecei a frequentar o oitavo ano do ensino
básico. Primeiro, na Moita do Ribatejo, depois continuei os estudos no Liceu
Gil Vicente (Graça, em Lisboa) e terminei o ensino secundário na Escola
Secundária da Amora (concelho do Seixal, na Margem Sul do Tejo).
Na Faculdade, fiz o primeiro
ano da licenciatura em História na Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra, e o restante curso na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Aí comecei um mestrado em História Contemporânea, mas que não concluí, posto
que me transferi para os Estudos Africanos do ISCTE-IUL, ali perto, onde fiz o
mestrado e doutoramento.
Onde passou a infância e
juventude?
Em Moçambique, durante a
infância e a adolescência, vivi nos arredores de Lourenço Marques/Maputo (sul),
e na própria cidade onde ia com frequência pelas mais variadas razões.
Nas férias escolares grandes,
ia visitar os familiares do meu pai (na cidade da Beira e arredores, no centro
do país), da minha mãe (na cidade de Tete e arredores, também no centro), na
cidade de Lichinga (onde vivia uma tia materna, no extremo-norte) e
Nampula/Nacala (onde o meu pai trabalhou nos inícios dos anos setenta).
Já a viver em Portugal, quando
comecei a fazer investigação que implicava a realização de trabalhos de campo,
entre 1997 e 2015 (em anos intermitentes) acabei por conhecer, ao todo, oito
das dez províncias de Moçambique, nuns casos melhor do que noutros. Usei e
abusei da paciência dos meus conterrâneos moçambicanos para jogarem conversa
fora e eu fazer disso matéria-prima de conhecimento acadêmico ou intelectual.
No resto da adolescência e
juventude, vivi em Portugal. Primeiro relativamente fechado, em termos de contatos
sociais e de amizades, no gueto imigrante dos antigos colonizados ou retornados
(moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos), depois fui-me aportuguesando. Faz
parte.
Acabou por ser também a minha
escola de vida. Quando olho para o meu filho, de 19 anos – nascido, criado e
vivido na classe média portuguesa –, considero-me um felizardo por ter
beneficiado de uma vida empurrada pelo furacão da história do século XX, em
muito destrutiva e idiota. Mas também teve o inverso.
Muitas vezes recorro ao
exemplo da minha mãe para me retratar a mim mesmo, mas ela foi o espelho
ampliado. Poderia também ser o caso do meu pai, que referia que o meu avô sírio
(que também não conheci) tinha ascendentes escoceses.
Voltando à minha mãe, nasceu
no mato, no interior mais recôndito moçambicano, no Fingoè, depois foi viver
para a capital da sua província natal, a cidade de Tete. Com o casamento,
passou a viver na segunda cidade mais importante de Moçambique, a Beira. Mais
tarde, mudou-se para Lourenço Marques/Maputo, a capital da colônia e depois do
país independente.
Na última etapa, fez-se
imigrante na antiga metrópole, Lisboa, para acabar sepultada no talhão islâmico
do cemitério do Feijó (em Almada). Foi uma peregrinação migrante ao longo da
vida sempre da periferia para o centro, uma forma de pensar os impérios
coloniais europeus que a esquerda interdita. Não lhe dá jeito.
Se pensarmos que os
antepassados da minha mãe são provavelmente do Paquistão, e que ela tem
parentes indianos ou com essa ascendência que acabaram por se fixar no Reino
Unido, o novelo dá uma ideia da revolução civilizacional imposta pelo século
XX. Depois, eu mesmo acrescentei qualquer coisa casando-me com uma portuguesa.
A minha irmã mais velha fez antes o mesmo.
A outra gerou descendência com
um moçambicano e depois com um senegalês de ascendência cabo-verdiana, com
parentes em França.
E um outro irmão, com uma
moçambicana de ascendência goesa, tal como o primeiro-ministro, António Costa.
Entretanto, ainda outro irmão
meu, o segundo na hierarquia, lembrou-se de falecer antes do tempo (1958-1986),
e acabou por servir de batismo do enterro dos nossos restos mortais familiares
em terras lusitanas, o que não deixa de ser uma semente de um novo patriotismo
que, com o tempo, descobri. Mas que jamais apagará a minha identidade
moçambicana. A identidade portuguesa passou a sobrepor-se sem atropelos e é um
processo intergeracional. A vida não para.
Qual (ou quais) acontecimento marcou a sua
infância e juventude?
O meu destino ficou traçado pelo processo
de transição da era colonial para a independência de Moçambique, em 1974-1975.
Foi no final da minha infância.
De um dia para o outro, a tranquilidade da vida
habitual no bairro onde vivia, nos arredores de Lourenço Marques (depois Maputo
a partir de 1976), foi trocada pelo medo; a porta aberta da moradia térrea da
minha família perdeu o velho significado amistoso, assim como o mato que ficava
do outro lado da rua que ia ter à linha de caminhos de caminhos-de-ferro; o meu
pai e a minha mãe, tal como os mais velhos, passaram a sussurrar em vez de
falarem abertamente e apercebi-me que as noites, para eles, não eram mais
tranquilas; um pouco de arroz ou feijão acumulados eram escondidos dentro de
casa e geravam um sentimento de crime público, com as crianças prevenidas para
a manterem a boca calada; os vizinhos portugueses de sempre passaram a inimigos do povo, logo obrigatoriamente
nossos inimigos, desaparecendo rapidamente do bairro por causa da insegurança e
da lei 24/20, de inícios de 1975: tinham de abandonar o país onde viviam, às
vezes por mais de uma geração, em 24 horas com direito a 20 quilogramas de bagagem
por pessoa, o limite máximo de carga permitido nos voos de Lourenço Marques
para Lisboa, a isso se resumindo os seus direitos de propriedade, eles que
transformaram matos em bairros e cidades, uma expulsão sumária com aplausos dos
marxistas moçambicanos, portugueses, europeus e mundiais, sendo que até hoje é
proibido admitir a carga genocida dessa violência contra muitos que até viviam
na sua própria terra, e nem mestiços, mulatos e alguns negros escaparam, posto
que todos eles viviam também no bairro, mesmo que dominantemente branco; os
novos vizinhos negros valiam como polícias em busca de detalhes
incriminatórios, de um e de outro lado do muro da minha casa, como de outras.
Eram nuvens ameaçadoras que desciam à terra. Até a
minha avó negra desconfiava, para escândalo inicial do meu pai e irmãos: Agora com os pretos a mandar é que vamos
passar mal!
Ainda assim, nos primeiros momentos a euforia
abrupta da independência, e um certo romantismo, pareciam compensar tudo o que
se sentia ser errado. Ilusão de pouca dura. O mal tinha vindo para ficar.
Multiplicou-se em obrigações espúrias, como os moradores terem de se juntar ao
domingo de manhã para cultivarem um qualquer terreno estéril, o teste para
apurar as famílias fiéis e as traidoras; as lojas iam ficando vazias e
fechando, ou os comerciantes a desaparecerem para não serem sumariamente
sentenciados como açambarcadores; um
ou outro familiar nosso neófito no entusiamo frelimista-revolucionário tão
depressa subia na vida, ocupando cargos deixados vagos pelos portugueses,
quanto acabava recambiado para uma prisão ou para um campo de reeducação para
se curar dos vícios do colonialismo,
desaparecendo para sempre ou regressando para sobreviver mais uns poucos anos
carregado de tipo de doenças más; os castigos públicos humilhantes iam
aparecendo, por dá-cá-aquela-palha, com muitos negros libertados a serem chamboqueados,
isto é, chicoteados como nos piores e há muito ultrapassados tempos primeiros
da colonização;
havia rumores de fuzilamentos sumários; uma população
autóctone africana, que os portugueses souberam manter pacífica ou mesmo fazer
dela pacífica, agora via-se desarmada nas mãos de loucos; nas escolas os alunos
podiam seguir, em poucas semanas, para o paraíso cubano ou para a magnífica
Europa de Leste, ou ainda desaparecem no interior do país em dos projetos de
desenvolvimento revolucionário, e sem que a opinião dos progenitores valesse o
que quer que fosse; os cooperantes cubanos iam chegando; as novas rusgas da polícia do povo contra o inimigo interno, às vezes a pretexto de
um simples esquecimento do bilhete de identidade em casa, poderiam tornar num
instante qualquer destino num martírio funesto; em um-dois anos passaram a
ouvir-se rumores de uma nova guerra, agora provocada pelos bandidos armados, como se as populações não tivessem direito de
reagir ao serem compulsivamente confinadas em aldeias comunais socialistas para passarem fome e serem-lhes
arrancados os poucos que possuíam em benefício da cooperativa, como umas quantas cabeças de gado, populações que
sempre tinham vivido nos seus espaços e ritmos ancestrais, que nem sequer
desgastavam os solos e os recursos naturais.
Apesar dos seus crimes, Salazar, Franco ou
Pinochet, comparadas com aquela loucura marxista, foram uns santos.
Ao mesmo tempo, a família – a minha e outras –
iam-se descontrolando nos valores e hábitos e, a conta-gotas, lá por casa,
um-por-um ia fazendo as malas e fugia como podia para Portugal, mesmo sem
garantias de amparo no destino para não ser engolido para sempre por um monstro
que ia nacionalizando tudo, dando cabo da economia e de tudo quanto era
instituição: Estado, Igreja, Família, o que seja. Debandávamos simplesmente
para Portugal.
Aconteceu comigo e com o meu irmão gémeo, em 1980,
que seguimos sem pai nem mãe. Estes continuaram a tentar resistir. Depois logo
se via.
Ao longo da década seguinte, a de oitenta, com
perda de património, de condições de vida e traumas pesados – e nenhum de nós
se preocupara antes em saber de onde vinha e para onde ia a colonização
portuguesa – a família teve de se refazer na antiga metrópole, em Portugal.
Felizmente, não durou muito para que os laços familiares ficassem fortemente
reforçados até hoje, e nem as ligações com Moçambique foram perdidas, com
primos, tios direitos e demais parentes. Mas nem todas as famílias conseguiram
tal proeza, atravessadas por divórcios, desemprego, toxicodependência, perda de
dignidade, alcoolismo, abandono escolar como se isso não tivesse responsáveis,
os revolucionários portugueses e moçambicanos.
Quando o meu pai, o último da família a abandonar
o barco moçambicano, partiu em 1984 – ele que foi atravessando de comboio as
zonas dos novos tiros desde os inícios da guerra civil com a sorte de ir
escapando com vida – já a guerrilha da Renamo começava a passear a sua
violência nas ruas do bairro pacífico dos arredores de Maputo onde morávamos,
desde 1968.
Moçambique estava a ser mergulhado, pelos
comunistas que ainda hoje, polidos,
continuam no poder num ciclo de horrores que deixará sequelas nos próximos
séculos: morais, intelectuais, sociais, econômicas, culturais, religiosas,
degradação urbanística, eterna insegurança, famílias desestruturadas e outras
desgraças que se possam imaginar. É como olhar para um jovem na flor da idade e
a caminho da prosperidade e, de repente, esse jovem ser atingido por uma doença
crónica altamente incapacitante e sem ter quem lhe possa valer para a
eternidade.
Nunca fui nem serei contra a justiça e a dignidade
da independência moçambicana. Mas quando se transita do abstrato para o
concreto, tudo se resume a crimes e imbecilidades. Costumo até fazer uma
comparação para defender que Moçambique, no tempo colonial terminado em
1974-1975, foi muito melhor em termos de miscigenação do que o Brasil, em si
notável, mas a minha terra era um raríssimo exemplo de tranquilidade e
funcionalidade, um chão que tudo misturava pacificamente e tornava fértil.
No tempo colonial que vivi, era como se o conselho
de administração fosse português, os investidores fossem ingleses (dada a influência
dos regimes brancos da África do Sul e da Rodésia do Sul, hoje Zimbabwe), a mão
de obra especializada viesse do Índico (pela influência de goeses/canecos,
hindus/baneanes e islâmicos/monhés) e, na base, estivesse uma tão extensa
quanto heterogénea mão de obra africana que, raramente se refere, o sistema
colonial foi miscigenando diluindo eficazmente as violências e tensões étnicas
ancestrais que, depois de 1975, o marxismo frelimista reativou com uma
virulência inaudita. Naquele meio colonial havia cultos tradicionais, uma parte
miscigenada com o Islão, havia islâmicos propriamente ditos, católicos e outros
cristãos, hindus e o mais que viesse.
De criminalidade urbana, e muito menos de intolerância
religiosa, nem se falava. Não faziam sentido. A diversidade era absolutamente
normal.
A perseguição religiosa, humilhante para islâmicos
(por exemplo, em tom jocoso pelo presidente, Samora Machel [foto], perguntando em público se queriam morrer
de fome ou comer carne de porco, embora esta citação seja baseada no
disse-que-disse) e católicos (cujas igrejas foram usurpadas para práticas
culturais não-religiosas, revolucionárias), e violenta para as testemunhas de
Jeová (enviadas praticamente para a morte em campos de reeducação) – foi
trazida pela mão comunista, com a independência.
Além do que tinha vivido, colhi muitas dessas
memórias nas minhas entrevistas com pessoas comuns, entre 1997 e 2015. Embora
numa zona localizada, na terra do meu pai, na cidade da Beira havia, no tempo
colonial, uma comunidade de chineses, uma outra variante da diversidade social
da época. Por outro lado, eram os monhés quem
mais avançava para o interior do território para instalarem os seus negócios
promovendo uma colonização indireta assente em muitos símbolos do Índico
(vestuário/capulana, caril, etc.), como fez o meu avô materno, monhés que se miscigenavam com
africanos. Os canecos católicos, goeses, faziam o papel de mais brancos
que os brancos, a fina flor da hierarquia colonial. Toda essa mistura era
extraordinariamente fértil e funcional, e tinha uma enorme autonomia em relação
à intervenção direta dos portugueses, sem atropelos sobretudo a partir de
inícios dos anos sessenta. Eu não tinha grandes entraves em entrar numa
mesquita ou numa igreja. E não era caso único. Nem os padres católicos, nas
zonas do interior, padeciam de bloqueios a esse nível.
Conta-se até que o pai do atual presidente da
República Portuguesa, o católico português Baltazar Rebelo de Sousa, quando
governava Moçambique financiava a ida de líderes islâmicos moçambicanos em
peregrinação a Meca. Toda essa diversidade num único território, rara na
história universal, foi simplesmente jogada ao lixo pelos revolucionários
marxistas, os que mais falam em tolerância e globalismo.
Na época colonial moçambicana quem vinha de fora
depressa se adaptava a Moçambique e poderia, sem esforço, cortar o cordão
umbilical com a terra de origem. A sociedade colonial que conheci absorvia o
que vinha de fora para tornar pacificamente funcional. Antes de eu nascer, em
1962, os meus pais e três irmãos mais velhos tiveram direito, como ele era
funcionário, a uma licença graciosa de seis meses de férias em Lisboa com boas
condições. Pouco depois estavam desejosos de regressar a Lourenço Marques, à
sua casa e vidas, que não trocavam por viver, à época, em Lisboa. Foi isso a
terrível colonização portuguesa? Hoje quem pensa assim, quem troca a Europa por
África? Depois da independência, em 1975, começou e até hoje continua o caminho
daquele país em sentido contrário, o do progressismo.
Uma sociedade tornada agressivamente negra nas
suas elites, alguns até sem papas na língua a defendem a pretização do poder político e econômico; uma sociedade tornada
violenta, fechada, disfuncional, avessa a quem vem de fora, a tudo o que seja
diferente, patologicamente marxista. Em nenhum momento do século XX a sociedade
colonial dominada pelos portugueses se assemelhou a tal coisa. Quantas vezes
não recolhi, nas entrevistas com negros comuns estq frase: «Naquele tempo (colonial) quem
levava porrada eram esses que provocavam, que não respeitam, eu nunca dormi na
cadeia!» Mesmo quando se fala da guerra colonial (para os colonos) ou luta
de libertação nacional (para a Frelimo), travada entre 1964 e 1974, já não
tenho paciência para tanta mentira sobre Moçambique.
O país é extenso, tem dez províncias, e a guerra
ficou acantonada numa província do extremo-norte (Cabo Delgado) e depois desceu
para algumas zonas da província natal da minha mãe (Tete). Num país com
inúmeros dialetos, extenso, quase sem rádio ou sem televisão, e sem que
houvesse uma verdadeira língua franca, quando comecei a fazer trabalho de
campo, em 1997, na maior parte das zonas do país, e mesmo na província de Tete
onde houve guerra, posso inferir que a esmagadora maioria das pessoas comuns
não tinha ideia de que era colonizada e de que havia uma guerra. Muitos
referiam que o zunzum da guerra era uma coisa distante e que não sabiam quem
eram os turras. Só no final da
guerra, em 1974, perceberam que a mesma era para libertá-los e que os turras
(como os designavam os portugueses) eram a Frelimo.
Claro que muitos refizeram os discursos sobre a colonização a partir de 1974,
sendo que a nova versão foi compulsivamente imposta pelo ensino, mas com uma
ingenuidade que o meu trabalho de campo permitiu detetar incongruências na
memória social a olho nu.
Um idoso islâmico inteligente, negro, que
entrevistei em 1998 no norte de Moçambique, em Angoche (antiga António Enes),
na província de Nampula, e que sempre viveu ali, disse-me qualquer coisa como: «Nós olhávamos para a placa que dizia
‘Companhia Colonial’ e nunca pensámos o que era isso de ‘Colonial’. Só em 1974
é que descobrimos que, afinal, esta terra não era dos portugueses, era nossa, e
estávamos a ser libertados.» Toda a aldrabice histórica fabricada por
comunistas do ‘povo em luta’, exímios
sequestradores da memória dos povos, um dia tem de ser desfeita, posto que
impuseram que se refizesse o sentido habitual da anterior vida quotidiana
colonial desde 1974.
Tal como os russos que, a partir de 1917,
refizeram o sentido da relação das pessoas comuns com a vida habitual anterior,
na época czarista. Quem lê Tolstói ou Dostóievsky não custa percebe isso.
Imagine qual o impacto, no sul do Brasil, de uma
guerra passada no extremo norte do Brasil que as pessoas simplesmente ignoravam
porque viviam pacificamente e, mais, se entre um e outro extremo do Brasil as
pessoas falassem uma miríade de idiomas muito distintos e não houvesse uma
língua franca ou mídia? Nenhum!
Em suma, existe quem tenha direito a arrasar
países, sociedades ou o mundo com uma enorme cara de pau porque mente, e todos
sabemos que mente. O problema é que estas matérias são impossíveis de ser
conversadas, e muito menos ensinadas nos meios universitários africanistas que
infestam tudo quanto é sítio com o seu veneno mental: Portugal, Brasil, África.
Simplesmente burros, mentirosos, perversos. Mas carregados de diplomas.
Quando começou a trabalhar?
Tinha uma vida de classe
média em Moçambique e, aos 14/15 anos, comecei a trabalhar nas obras em
Portugal, o servente que carrega baldes de massa e sacos de cimento às costas.
Quando a minha mãe
chegou a Portugal, tivemos de viver cerca de um ano numa barraca, no Vale do
Jamor (nos anos noventa todo esse espaço urbano miserável desapareceu do mapa,
dadas as novas construções permitidas pelos financiamentos garantidos pela
adesão de Portugal à comunidade europeia, em 1986).
Hoje olho para esse
passado pessoal como muitíssimo bom. Nunca tive tantas boas experiências,
amigos, nunca a vida me ensinou tanto. A minha família conseguiu sair desse
buraco depressa sem subsídios do Estado, por ser essa a nossa ambição, e sem
que os filhos interrompessem os estudos ou se furtassem a ter de trabalhar. Por
isso foi fácil. Desde essa idade, eu trabalhava sempre nas férias grandes e, às
vezes, nas pequenas. Com o passar dos anos, transitei em voo direto das obras
para a sala de aula, para a docência, desde 1991, no ensino básico e secundário.
Depois com algumas passagens pelo ensino superior, em Portugal, mas sem pouso
definido.
Nos meios acadêmicos
africanistas, onde tenho formação especializada, não existem condições mínimas
para manter a sanidade mental. Quando, em 1996, entrei nos Estudos Africanos,
em Lisboa, havia algum pluralismo e liberdade que, na década seguinte, vi
esfumar-se a cada dia. O núcleo africanista tornou-se num antro de radicais
esquerdistas que se fecharam a sua redoma de carreiras universitárias, tanto
piores quanto menor a experiência vivencial de África.
Foi nessa época que
começaram a aparecer, em Lisboa, bolseiros brasileiros financiados pelo PT, e
que julgavam saber mais de África do que os próprios africanos, por vezes sem
sequer passarem por lá. Alguns dos pesquisadores seniores esquerdistas
portugueses recomendavam-me, em modo quase compulsivo, que seguisse as teses
utópicas desses africanistas esquerdistas brasileiros formados em África por
telepatia e ao ritmo das idiotices do Chico Buarque.
Paulo Freire, por
exemplo, nunca teve réstias de consciência para perceber o quanto as suas
teorias destruíram o ensino em África, eu que vivi o ensino no tempo colonial e
no tempo pós-colonial e vi os africanos afastarem-se dos velhos métodos do
ensino colonial em busca das novidades
pedagógicas libertadoras, e Paulo Freire tinha a vantagem da língua
portuguesa.
Destruir o ensino em
África foi sinônimo de destruir África. Não há palavras para esse rol de
criminosos intelectuais, ou tão-só criminosos. É hoje quase impossível haver
vida inteligente no campo africanista nos meios universitários.
Descontado o Brasil, o
que mais faz falta a Portugal e a todo o espaço da língua portuguesa é um Olavo
de Carvalho. Ele será a versão positiva, para o século XXI, sendo a influência
de Marx o inverso negativo que se abateu sobre o martirizado século XX. Um dia
espero comprovar essa tese em defesa de Olavo de Carvalho e do Novo Brasil,
aquele muitíssimo mais do que um intelectual, um verdadeiro sábio.
Obrigado, Professor!
A conversa vai continuar. Aguarde, por
favor.
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Conversas anteriores:
wow. esta veio de dentro.
ResponderExcluirGostei do texto, hoje à noite lerei com mais calma!
ResponderExcluirAté para que possa entender direito o espirito de que estava imbuído o autor.
Uma imagem me veio a mente ao fim quando fala do Olavo de Carvalho, me vi frente a um Grigori Rasputin ,da era moderna. Ou não?
Muito bom, aula de história da Africa.
ResponderExcluirBom finde,
Ellen
Texto muito elucidativo e muito bem escrito. Gostei!
ResponderExcluirPAHAHAHAHAHAHAHAHAH
ResponderExcluirPARACISTA
ExcluirO QUE VEM A SER ISTO?
ExcluirPARACISTA??
NEM O GOOGLE SABE!
A RESPOSTA DI TLA HEBER FOI:
ExcluirPA AAHAHAHHAHAHAHAHHAHAHHA
A MINHA FOI PA RACISTA
TU SABES O QUE É PA EM PORTUGAL....
??????
ExcluirO google diz que é "rapaz", o que torna a conversa totalmente sem sentido. (Pelo menos para mim!)
Heber;-rapaz AAHAHAHHAHAHAHAHHAHAHHA
Roccha;-rapaz RACISTA
RSRSRSRS!!!???
Depois de um texto impecável.
ResponderExcluirDepois de um livro ótimo, "UM SÉCULO DE ESCOMBROS".
Vem um "pa" com algoritmo de risadas debochar é um descalabro.
Só pode ser racista ou "paracista".
Não foi erro de digitação, pois o "P" está 4 teclas longe do "H".
Mesmo se fosse uma história de vida que eu não concordasse, não haveria de ironizá-la.
Cada um tem a sua.
Por isso nós aviadores, temos um discernimento melhor da vida. Cada um colocou a profissão acima das famílias muitas vezes.
Aviadores são cirurgiões que erram e não podem mudar a história de suas culpas, sempre serão os culpados.
Detesto gente que age feito jagunço, ironizando histórias, as quais não entende.
Eu acho os algoritmos de supostas risadas, fora do contexto, exceto em piadas.
Quando não há nada a contestar-se, contenta-se.
Quando estive pela primeira vez em Moçambique, impressionou-me a pobreza.
Quem nunca a viu, ri.
Lembra-me o "belemzão" que juntávamos nossos lanches para dar para a pobreza em Terezina.
O "putinho" merece ser escrachado.
Lembra-me a placa que havia na praça do Rossio:
- PEDESTRE VÁ PELA DIREITA MAS SE QUISERES PODES IR PELA ESQUERDA.
Entendi menos ainda!
ResponderExcluirMas não se de ao trabalho de explicar , me deixe morrer ignorante,afinal não é nada relevante!
Quando consultei no google encontrei; a interjeição "pa";'O vocativo pá usa-se em conversa informal, geralmente entre amigos, tratando-se de «forma utilizada (...) para indivíduos de ambos os sexos», apesar de derivar «de ra(pa)z». Utiliza-se em frases simples, como «Estás bom, pá?», «Então, pá, como vais de saúde?», «Isto vai muito mal, pá!» etc.'
E fiquei sem entender, onde entrava o “rapaz” no comentário!
E o "putinho" citado acima ,eu sei que é um garoto pre-adolescente ,mas não sei o que tem a ver,o cu com as calças.
É comum ler coisas que só quem escreveu sabe o que quis dizer, então...
Em frente...
Continua aqui:
ResponderExcluirGabriel Mithá Ribeiro: “Não basta ser um político notável para resistir. É necessário algo mais. Bolsonaro tem esse algo mais que é difícil de definir”