J.R. Guzzo
A esquerda brasileira já
defendeu as causas mais assombrosas ao longo de sua história, mas está
empenhada neste ano de 2020 num esforço “de superação”, como dizem os manuais
de autoajuda, para ir ainda mais adiante.
Sua atual bandeira deixou um
pouco de lado a denúncia do capitalismo e passou a ser a luta contra uma
substância química – sim, pois a química pode parecer uma coisa neutra para
você, mas não para o chamado “campo popular”, onde se transformou no grande
farol político do momento para as massas. Essa substância é a cloroquina. É
curioso, porque até seis meses atrás, no máximo, os próprios esquerdistas não
saberiam dizer se eram contra ou a favor da cloroquina – a maioria, na verdade,
nunca tinha ouvido falar nela. Mas com a Covid-19 tudo mudou.
A esquerda brasileira, por
razões que talvez um dia se tornem mais compreensíveis para o público em geral,
tomou desde o início uma posição radical a favor do vírus. Como essa
cloroquina, no entender dos milhares de médicos que estão fazendo uso dela para
seus pacientes, pode ajudar na recuperação dos infectados nos estágios iniciais
da doença, os militantes progressistas fecharam questão: qualquer medicamento
que possa oferecer riscos de ter algum efeito positivo contra a Covid-19
precisa ser combatido.
O raciocínio, tanto quanto foi
possível deduzir até o momento, é que a cloroquina pode reduzir o ritmo da
contabilidade diária de mortos. Essa redução é considerada um perigo político
claro e imediato – pois menos mortos significa mais possibilidades de fazer o
Brasil funcionar de novo, e tudo o que de alguma maneira venha a colaborar com
a volta da normalidade é considerado “inaceitável” pela esquerda nacional.
É o que se pode ouvir em
qualquer mesa redonda mais cabeça, das tantas que há por aí: o “sistema
produtivo” que existia no país até o início da epidemia não pode ser retomado,
garantem os especialistas chamados a nos ensinar como tem de ser o mundo daqui
para a frente. As mortes causadas pela Covid-19 não são resultado da ação de um
vírus; foram causadas pelas “formas capitalistas de produção”. É preciso,
portanto, mudar “tudo isso que está aí”, etc, etc, etc.
A palavra de ordem, na questão
específica da cloroquina, é que não se provou até agora, cientificamente e além
de qualquer dúvida, qual o seu grau de eficácia no combate à Covid-19.
Conclusão: ela não deve ser aplicada até que a medicina, ao longo dos próximos
anos, demonstre com exatidão os seus efeitos. Também não se pode garantir com
100% de certeza o efeito de antibióticos, corticóides, anti-inflamatórios e
mais uma penca de medicamentos utilizados todos os dias nos hospitais do mundo
inteiro. Pode haver variações de acordo com o organismo do paciente, seu
histórico de saúde, o estágio da doença e outras particularidades; nem por isso
há campanhas políticas para proibir a sua utilização.
Mas aí é uma questão de fatos,
e fatos são o que menos interessa na presente cruzada contra a cloroquina. A
única atitude permitida é: “fique em casa”, esperando que um dia seja
descoberta uma vacina infalível, que também vai ter de enfrentar uma batalha
morro acima até ser autorizada pelas nossas forças populares, democráticas e
progressistas.
Título e Texto: J. R. Guzzo,
Gazeta do Povo, 27-7-2020, 20h37
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