sábado, 4 de dezembro de 2010

As venturas do 'Leite Derramado': um verdadeiro estorvo literário?

Romance de Chico Buarque arrecadou os dois maiores prémios literários no Brasil: o Jabuti e o PT. Mas fala-se em decisões políticas. Afinal, o que é que o 'Leite Derramado' tem?

Foto: Leonardo Negrão/Global Imagens

No espaço de poucas semanas, Leite Derramado, o livro do escritor-compositor Chico Buarque, com chancela da Companhia das Letras, foi consagrado o melhor romance de 2009 em dose dupla. Primeiro, no início de Novembro, o Prémio Jabuti, o maior reconhecimento literário brasileiro desde 1959, que Buarque já ganhara com os livros Estorvo (1992) e Budapeste (2004). Depois, o Prémio de Literatura Portugal Telecom, PT, que dá sinais de ambicionar consagrar-se como o grande da categoria. O presidente da PT, Zeinal Bava, assim o confirmava, em tom regozijado, na cerimónia de entrega da distinção, em São Paulo, no Brasil. "Chico vai catapultar este prémio para outro patamar." O prestígio, entendia-se, para o prémio que passou a oitava edição.

Mas há um ruído de fundo que tem desafinado o reconhecimento do Jabuti a Buarque. Os critérios de avaliação do júri têm sido criticados, na imprensa e em blogues, por editores, escritores e críticos literários no Brasil e em Portugal. O livro de Chico não estava entre os favoritos da lista inicial.
A gravidade do tom intensificou-se logo que o presidente do Grupo Editorial Record, Sérgio Machado, garantiu que não participaria mais do prémio, depois de o livro Se Eu Fechar os Olhos agora (Record), de Edney Silvestre, o favorito na primeira etapa do prémio, ter ficado em segundo. Machado enviou uma carta à Câmara Brasileira do Livro, CBL, responsável pelo Jabuti, discordando dos critérios. Alguns dias depois, em entrevista à Folha de São Paulo, o presidente da Record disse que o prémio era "um concurso de beleza".
A disputa permite que o segundo ou o terceiro colocados na primeira etapa de selecção vençam os prémios de livro do ano de ficção e não ficção, superando os favoritos. "É muito estranho que isso tenha acontecido", afirma ao DN, Daniel Benevides, crítico literário da Folha de São Paulo e do portal UOL, "mas é preciso ter em conta que o júri final do Jabuti não é só composto por especialistas em literatura, mas sim por pessoas do mundo editorial e, por isso, com uma lógica mais comercial". Falta coerência à distinção, aponta o crítico literário. "Não se está a pôr em causa o valor de Leite Derramado, mas sim os critérios do Jabuti." Só que o prémio está regulamentado. Quem concorre, alinha com os critérios, reconhece Benevides.
Chico Buarque tem-se mantido à margem da controvérsia. A Companhia das Letras escusa-se a comentar o caso. Porém, o episódio não é inédito. Em 2008, por exemplo, Ignácio de Loyola Brandão ficou em segundo na categoria livros infantis. Depois levou o prémio de melhor livro de ficção.
Nesta polémica com Leite Derramado há, ainda, outro desafino. Quando se anunciou o nome de Chico Buarque na cerimónia de entrega do Jabuti, em São Paulo, houve silêncio, surpresa, quebrados pela ovação de alguns convidados: "Dilma! Dilma!" - nome da nova Presidente do Brasil, a favor de quem o escritor encabeçou um manifesto, em época de eleições. A imprensa agarrou o sucedido e os críticos colaram a atribuição do prémio a razões políticas. Benevides descarta essa "absurda" hipótese. "Quem conhece o Chico sabe que ele até ficou constrangido com essa associação."
No seu blogue, o crítico literário da revista Veja, Reinaldo Azevedo, foi mais longe, apelidando o evento de "espectáculo de vigarice política". E o único som que se ouviu de Chico logo após o prémio Jabuti foi para questionar até que ponto as críticas são motivadas mais pelo seu mediatismo do que pela força da obra e vice-versa. 

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