terça-feira, 1 de maio de 2012

Dilema Africano dos Tuaregues

Robert D. Kaplan
Há alguns anos, quando saí de Niamey, a capital do Níger, e me dirigi para o norte numa trilha esburacada e suja foi como se o país desaparecesse sobre mim. Não havia polícia, nenhum sinal de autoridade, nada. Inundações instantâneas tinham deixado a estrada completamente aluviada em certos locais, com as rodas dos grandes caminhões meio afundadas na lama, e motoristas estancados por dias nos acostamentos. Por aqui havia apenas Tuaregues, os "homens azuis”, como eles são chamados em função da cor de suas vestes chamativas e o azul tingido delas ("nila") e que eles besuntavam em seus corpos.

Os Tuaregues, uma gente bárbara e pastoril, eram os lordes do Saara; é melhor ter a companhia de um Tuaregue do que um aparelho de GPS, como diz o ditado das Forças Especiais do Exército dos EUA, com as quais eu estava engajado. Minha experiência de rumar para o norte de Timbuktu em Mali foi ainda mais extrema. Embora denote a volta do além, Timbuktu era realmente um local cosmopolita – com um museu de manuscritos islâmicos medievais, alguns restaurantes decentes, e antenas parabólicas – comparado com o lugar para onde eu estava indo. 

O deserto do Saara se estende por todo o norte do continente africano, do Atlântico ao Mar Vermelho. Outrora havia aqui uma floresta tropical como a Amazônia... Os egípcios que o digam!
Saí para Araouane, 240 km (150 milhas) ao norte de Timbuktu deserto adentro. Araouane era um nome no mapa, como se fosse Cleveland ou outro lugar qualquer. Mas ninguém em Timbuktu – e certamente não em Bamako, a capital malinês muito distante no sudoeste – sabia qualquer coisa a respeito de Araouane, e se ainda alguém vivia lá. Levou 14 horas e numerosas paradas na areia fina até alcançar Araouane, um amontoado de ruínas num vazio cósmico onde apenas mulheres, crianças e idosos viviam – os homens Tuaregues saem para praticar incursões de comércio em rotas de caravanas, através do deserto. 

Vista de Araouane, do satélite, não passa de um conjunto de ruínas que ora mergulham e ora emergem das areias levadas e trazidas pelo vento.

Aqui, o estado malinês não existe. Há uma lição geográfica aqui. Observe num mapa do Saara, do Oceano Atlântico ao Chifre da África e verá a Mauritânia, o Mali, a Nigéria e o Chade, países que abrangem um tamanho comparável à área dos Estados Unidos. Então repare onde as capitais desses países se situam: incrustadas ao longe, no sul, dentro da planície de Shael, onde são extensões demográficas e ambientais da costa da África Ocidental – e também onde estão as elites políticas locais, que os europeus descobriram estar localizadas.

Os tuaregues são os donos do deserto e dominam a região do norte do Mali, do Chade, da Mauritânia, e parte da Argélia.
Pode-se dirigir de Cotonou no Benim no Golfo da Guiné, para o norte por centenas de quilômetros até Niamey, e a paisagem quase não muda – comparada com as diferenças concentradas que se encontram mais adiante. Pois assim que se deixa Niamey rumo ao norte ou nordeste a paisagem evolui até o completo deserto. Uma situação similar ocorre após se deixar estas outras capitais. Os colonizadores europeus ao desvendar essas paragens decretaram que o deserto seria governado não de um ponto central, como previamente haviam feito as culturas bárbaras e nômades, mas de uma periferia distante, orientada pela costa na planície de Shael.

Tal situação tornaria a governança no interior difícil, na melhor das hipóteses. Mas nesta parte da África a condições são as piores possíveis, uma vez que o nível de desenvolvimento institucional e as ligações de transportes sã abissais, e é através de rodovias que as instituições governam os sertões desertos e afastados. Há pouca atividade econômica no deserto fazendo com que os governos mantenham não maios do que uma leve pegada por lá. Tais países não passam de um amontoado de cidades-estados -- Nouakchott, Bamako, Niamey, Ndjamena – com exércitos próprios que tentam manter alguma ordem nas áreas mais distantes e menos populadas.

Exércitos locais nunca conseguiram governar este deserto; ao invés, eles têm mantido durante a maior parte do tempo um cessar-fogo estável com os Tuaregues por lá (quase sempre pela integração de guerreiros Tuaregues chaves com bases militares locais). A democracia complicou a situação, mesmo que ela tenha ajudado a dar início a uma tradição de melhores governanças. Como certa vez um diplomata em Bamako me explicou, com a democracia passou a haver mais pressão sobre os políticos locais para gastar dinheiro no sul populoso, próximo à capital, pelo fato de que é lá que está o grosso do eleitorado. E sem a ajuda às comunidades ao norte, a governança não pode eventualmente ser realizada.

Foto: Reprodução/AFPTV/France 2 - Rebeldes tuaregues tomaram três cidades do Norte do Mali e declararam a independência da região.
 A mais efetiva experiência governamental nas terras tuaregues do Saara foi a da Argélia. Há poucos anos, passei um mês em Tamanrasset, no estremo sul da Argélia, tão longe da capital Argel no Mediterrâneo como de Lagos na Nigéria no Golfo da Guiné. A Argélia é um estado real, com um exército altamente profissional e diversas instituições. Ma foi o exército argelino que governou Tamanrasset e seus arredores, não os burocratas de um governo civil. A segurança, mesmo nesta cidade principal do Saara central – governado por um estado nada menos que mediterrâneo e norte africano – era tênue. A Argélia como tal, muito da Nigéria e Mali como tais, acabou longe, muito longe, de estar próximo à capital.

O dilema Tuaregue, no qual estes bárbaros seminômades têm recentemente conquistado a metade norte do território de Mali e podem mesmo ameaçar os países vizinhos, não está completamente solucionado. O moderno sistema estatal europeu é um elegante desajuste para o que se possa obter do Deserto do Saara. Entretanto, não está fora de questão que num futuro próximo, por meio da construção de melhores estradas (capazes de não serem soterradas pelas areias móveis do deserto) as instituições se tornem mais robustas – coisas que advêm com o desenvolvimento econômico e a democracia – e governos locais como os de Bamako e Niamey podem estender o desenvolvimento deserto adentro, mesmo que se garanta aos Tuaregues um razoável grau de autonomia. Um estado Tuaregue independente no Saara pode então existir mais formalmente – e o ocidente ainda terá aliados para combater a al Qaeda na região.

O problema em Mali, onde jovens oficiais do exército têm deposto governos eleitos ostensivamente por causa de sua incapacidade em controlar os Tuaregues no norte, não é a única ditadura a substituir a democracia. O problema também é a fugacidade da autoridade central em si. Num clássico trabalho de teoria do desenvolvimento, ‘Ordem Política em Sociedades Mutantes’ (1968), o professor de Harvard Samuel P. Huntington notou que muitos governos em locais como a África não podem simplesmente ser classificados como democráticos ou autoritários, por causa de sua principal "característica distintiva" ser a total “fragilidade", não importando quem esteja no comando. Eles têm poucas instituições para governar e fortes burocracias, ao invés de eleições que verdadeiramente definam um sistema adequado de governo.

Assim, Mali e seus vizinhos vão cambalear adiante. Poderá haver eleições em Bamako, ou não. Assaltantes Tuaregues podem controlar o deserto interior, ou um batalhão de soldados do sul vindos da capital poderá fazê-lo. O drama africano realmente fundamental será encenado gradualmente fora das estritas reportagens da mídia. Tal drama será sobre como, e se, o recentemente impressionante crescimento econômico da África pode levar à criação de uma classe média mais ampla. É uma classe média maior que leva, por sua vez, a ministérios governamentais mais eficientes e vigorosos, e a forças armadas mais bem equipadas e mais profissionais, de modo que os sertões do deserto possam ser mantidos sob controle e artificialmente descortinar fronteiras mais factíveis.

Os países saarianos, neste particular, representam uma versão mais extremada dos principais desafios africanos, como o fato de o deserto ter criado a maior dicotomia populacional dentro do continente.

E isso será duro de concretizar. Por exemplo, o fato de que a capital Luanda, de Angola, na costa atlântica, estar bombando graças à riqueza do petróleo offshore não significa que o extenso interior angolano no sudeste africano vá se beneficiar disso. O mesmo pode ser dito da recentemente enfraquecida e rejuvenescida Mogadíscio e se isso afeta ou não o resto da Somália. O desafio africano, ou pelo menos um aspecto dele, é estender a boa governança e o desenvolvimento muito além das suas capitais.
Robert D. Kaplan, abril de 2012
Tradução: Francisco Vianna

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