Victor Ângelo
O leitor talvez nunca tenha
ido ao Níger. Deixe-me, então, partilhar, umas breves notas sobre um dos países
mais pobres do mundo. Dos mais esquecidos, também. É uma terra de fome e seca.
Estima-se que 38% das crianças com menos de 5 anos sofram de deficiências
alimentares graves, que as marcarão para a vida. Em 16 milhões de habitantes,
há 10 milhões que precisam de ajuda alimentar. Em média, chove três vezes menos
no Níger do que em Cabo Verde. Como é usual no Sahel, a população nigerense é
muito digna e lutadora, sempre pronta a aproveitar as gotas de água que caem na
curtíssima estação das chuvas para cultivar uns grãos de painço ou de sorgo,
que são a base da alimentação. No resto do ano, a pecuária de pequenos
ruminantes e de esqueléticos zebus permite apenas uma sobrevivência no patamar
da miséria. O setor rural ocupa 83% da população ativa.
Lembrei-me disto ao ler o
comentário feito por Christine Lagarde, sobre as crianças em idade escolar,
numa aldeia simbólica, algures nas areias do Níger. Disse a senhora do FMI que
a preocupa muito a falta de oportunidades educativas para essas crianças.
Existe, é verdade, uma ânsia de aprender. Mas a luta quotidiana pelo que é
básico, encontrar um pouco de comida e acarretar água e lenha - cada vez há
menos, com o avanço da desertificação - faz com que a média da frequência
escolar seja de 1,4 anos. Assim, o Níger é um país que fica para trás, incapaz
de responder aos desafios do progresso e
do conhecimento.
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Niamey, foto: Wikipédia |
Não cabe aqui cair na ratoeira
de comparar o Níger com a Grécia. Nem expressar espanto pelas reações
suscitadas pelas palavras de Lagarde. É verdade que surgiram declarações
surpreendentes, incluindo muito disparate. Os cavaleiros andantes da
intelectualidade europeia e portuguesa vieram todos à arena, em defesa da
Grécia, nada dizendo sobre o Níger. Ninguém mencionou o sofrimento a que acima
faço alusão nem o facto de este país e de a região em que se insere terem uma
importância estratégica fundamental para a segurança de África e da Europa
Ocidental.
O que tudo isto significa é
que as elites europeias perderam o interesse pelas questões africanas, mesmo
por aquelas que ocorrem ao pé da porta. Com a chegada de uma nova geração ao
poder político, ao topo dos meios académicos e à comunicação social, a África desapareceu
do mapa das preocupações. Temos hoje uma liderança europeia introvertida. Esta
miopia política ganhou progressivamente forma durante a primeira década do
milénio. Está agora a ficar mais acentuada. A título de exemplo, noto que a
equipa que François Hollande nomeou para a cooperação internacional, no Quai
d'Orsay, é a mais fraca dos últimos governos, além de não ter experiência em
matérias africanas.
E Portugal? Em teoria, estamos
perante uma oportunidade única, a de poder recordar aos parceiros da UE que a
ligação com África deve contar. É isso que se espera de um país com os laços
africanos que nós temos. Para o podermos fazer, será preciso mudar de atitude,
no Palácio das Necessidades. Será possível? A nível institucional, a atual
Secretaria de Estado da Cooperação tornou-se num mero fantasma: acredita-se que
exista, mas ninguém a vê. O instituto que se ocupa da ajuda ao desenvolvimento,
por seu turno, é agora um apêndice à deriva. Receio, por isso, que Portugal
opte, uma vez mais, pelo silêncio.
Felizmente que Lagarde, embora
de modo desajeitado, nos veio lembrar que há mais vida para além da nossa
indiferença.
Título e Texto: Victor Ângelo,
revista Visão, 06-06-2012
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