Reinaldo Azevedo
Como José Dirceu é pitoresco,
né?
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Roberto Gurgel, foto: Sergio Lima/Folhapress |
Roberto Gurgel concedeu uma entrevista à Folha em que diz o seguinte sobre a culpa
de José Dirceu no mensalão:
“Não é prova direta. Em nenhum
momento nós apresentamos ele passando recibo sobre uma determinada quantia ou
uma ordem escrita dele para que tal pagamento fosse feito ao partido ‘X’ com a
finalidade de angariar apoio do governo. Nós apresentamos uma prova que
evidenciava que ele estava, sim, no topo dessa organização criminosa”.
Bem, bem, bem… Li a declaração
e antevi: “Lá vem Dirceu a afirmar que Gurgel confessa não haver provas contra
ele…”. Não deu outra! A cascata já está em seu blog.
Trata-se, obviamente, de uma
mentira, de conversa mole. Ao contrário do que diz Dirceu, Gurgel está dizendo
que o chefe da quadrilha foi condenado com base na lei.
No fim do ano passado, escrevi
um artigo na VEJA explicando, no detalhe, por que Dirceu foi condenado. Dirceu
repete a mentira, e eu me obrigo a repetir a verdade. Segue o texto.*
Antes uma realidade quase
intangível, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi parar na sala de estar dos
brasileiros em 2012. No ano em que Carminha e Nina, da novela Avenida Brasil,
embaralharam as noções corriqueiras de Bem e de Mal, os ministros se tornaram
porta-vozes dos anseios de milhões de brasileiros justamente por terem sabido o
que era o Bem e o que era o Mal. Cumpre notar que os juízes do STF não acharam
o direito nas ruas, no alarido dos bares ou nos debates das redações. Decidiram
segundo a Constituição, as leis e a jurisprudência da Corte. Personagens como
José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha se dizem vítimas de um tribunal de
exceção e conclamam seus eventuais seguidores a julgar os juízes. Queriam ser
tratados como sujeitos excepcionais. A questão é mais ampla do que se percebe à
primeira vista.
A luta dos homens por
igualdade perante a lei produziu tudo o que sabemos de bom e de útil nas
sociedades; já o discurso da igualdade ao arrepio da lei só gerou morte e
barbárie. Os atores políticos que tomam o mundo mais justo e tolerante anseiam
por um horizonte institucional que universalize direitos para que emerjam as
particularidades. Nas democracias, porque são iguais, os homens podem, então,
ser diferentes. Nas ditaduras, em nome da igualdade, os poderosos esmagam as
individualidades. Nas tiranias, porque são diferentes, os homens são, então,
obrigados a ser iguais. Uma possibilidade acena para a pluralidade das
sociedades liberais, e a outra, para os regimes de força, que encontraram no comunismo
e no fascismo sua face mais definida.
O petismo no poder é fruto do
regime democrático, sim, mas o poder no petismo é herdeiro intelectual do ódio
à democracia e da crença de que um partido conduz e vigia a sociedade, não o
contrário. Na legenda, não são poucos os convictos de que certos homens, em
razão de sua ideologia, de seus compromissos ou de seus feitos, se situam acima
das leis. Eis o substrato das acusações infundadas de que os ministros do STF
desprezaram a jurisprudência da Corte para condená-los. Trata-se de uma mentira
influente até mesmo entre aqueles que, de boa fé, saúdam a “mudança” do
tribunal.
Doses de ignorância específica
e de má fé se juntaram em pencas de textos sustentando, por exemplo, que, “sem
o ato de ofício”, seria impossível punir um corrupto. Fato! O truque estava no
que se entendia por isso. Os atos de ofício designam o conjunto de competências
e atribuições de uma autoridade, com ou sem documento assinado. O Artigo 317 do
Código Penal — uma lei de 1940 — assim define a corrupção passiva: “Solicitar
ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da
função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar
promessa de tal vantagem”. Ora, como poderia assinar um documento quem ainda
nem tomou posse? O voto de um congressista é um de seus atos de ofício. Se
recebeu vantagens indevidas em razão dele, praticou corrupção passiva. Pouco
importa se traiu até o corruptor.
A questão é igualmente vital
quando se trata da corrupção ativa, um dos crimes pelos quais foi condenado
José Dirceu, definida no Artigo 333 do Código Penal pela mesma lei de 1940:
“Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para
determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. Nos dois casos, se
o ato for efetivamente praticado, o que se tem é a elevação da pena.
Dirceu e seus sequazes, no
entanto, sustentam que inexistem provas e que ele está sendo condenado com base
numa interpretação falaciosa da chamada “Teoria do Domínio do Fato”, que busca
responsabilizar criminalmente o mandante, aquele que, embora no domínio do fato
criminoso, não deixa rastro. É evidente que não pode ser aplicada sem provas. E
não foi. Há não uma, mas muitas delas contra Dirceu. Parlamentares disseram em
juízo que os acordos com Delúbio Soares tinham de ser referendados pelo então
ministro; ficaram evidentes suas relações com os bancos BMG e Rural, como
atestam depoimentos da banqueira Kátia Rabello; foi ele um dos articuladores da
reunião, em Lisboa, entre Marcos Valério, um representante do PTB e dirigentes
da Portugal Telecom etc. O Artigo 239 do Código de Processo Penal trata das
provas indiciárias: “Considera-se indício a circunstância conhecida e provada
que, tendo relação com o fato, autorize, por indução, concluir-se a existência
de outra ou outras circunstâncias”.
Não é uma inovação para
perseguir Dirceu. A lei é de 1941. Em uma de suas intervenções, o então
ministro Ayres Britto esclareceu:
“(…) os fatos referidos pelo
Procurador-Geral da República (…) se encontram provados em suas linhas gerais.
Eles aconteceram por modo entrelaçado com a maior parte dos réus, conforme
atestam depoimentos, inquirições, cheques, laudos, vistorias, inspeções,
e-mails, mandados de busca e apreensão, entre outros meios de prova. Prova
direta, válida e robustamente produzida em Juízo, sob as garantias do
contraditório e da ampla defesa. Prova indireta ou indiciária ou
circunstancial, colhida em inquéritos policiais e processos administrativos,
porém conectadas com as primeiras em sua materialidade e lógica elementar(…)”.
A última falácia dizia
respeito à cassação dos mandatos dos deputados condenados com trânsito em
julgado. Corria-se o risco, como se escandalizou o ministro Gilmar Mendes, de o
Brasil ter um deputado encarcerado. Da combinação dos Artigos 15 e 55 da
Constituição com o Artigo 92 do Código Penal, decidiu o STF que parlamentares
condenados em última instância por crimes contra a administração pública estão
automaticamente cassados. Inovação? Feitiçaria? Juízo excepcional? Não! Apenas
a aplicação dos códigos que regem o país.
A gritaria que se seguiu à
decisão chega a ser ridícula. Eis a redação do Artigo 92 do Código Penal, que
cassa o mandato dos deputados mensaleiros, segundo autoriza a Constituição:
São também efeitos da
condenação
1 – a perda de cargo, função
pública ou mandato eletivo:
a) quando aplicada pena
privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes
praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração
Pública:
b) quando for aplicada pena
privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos.
É trecho da Lei n° 9268, de
1996, aprovada pela Câmara e pelo Senado. O Congresso, pois, já decidiu que
deputados e senadores condenados em processos criminais, com trânsito em
julgado, têm seus respectivos mandatos cassados, nas condicões discriminadas
acima. Para os crimes de pequeno potencial ofensivo, a palavra final é das duas
Casas. O STF harmonizou os dispositivos constitucionais e deu eficácia à lei.
Julgamento havido em 1995 tratava de caso muito distinto e, como se nota, se
deu antes da lei de 1996.
Coube ao decano, Celso de
Mello, o voto de desempate, alinhando-se com o relator e agora presidente da
Casa, Joaquim Barbosa, que resistiu a todas as patrulhas e intimidações de 2007
a esta data: “Não se revela possível que, em plena vigência do estado democrático
de direito, autoridades qualificadas pela alta posição institucional que
ostentam na estrutura de poder dessa República possam descumprir pura e
simplesmente uma decisão irrecorrível do STF.” O ministro estava dizendo, por
outras palavras, que, nas democracias de direito, é a igualdade perante a lei
que permite aos homens exercer as suas particularidades; é só nas tiranias que
as particularidades de alguns igualam todos os outros na carência de direitos.
Uma fala oportuna, no momento em que certos “intelectuais” de esquerda e
deslumbrados do miolo mole resolveram defender uma variante dita “progressista”
do “rouba, mas faz”, na suposição de que o desvio ético seria um preço a pagar
pelo avanço social. É espantoso. É o “rouba porque faz”. Só há um jeito de isso
ser considerado aceitável: além dos cofres, eles precisam ser bem-sucedidos em
roubar também as instituições.
Em nome do povo — isto é, das
leis —, o Supremo lhes disse “não”.
Título e Texto: Reinaldo
Azevedo, 10-01-2013
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