Alexandre Homem Cristo
Controlar as corporações é dominar o
debate, decretar o politicamente legítimo e obter tolerância perante
incompetências governativas. O equilíbrio da geringonça está aí: na mordaça
sindical da CGTP.
Nas escolas, o ano lectivo
arrancou sem auxiliares suficientes para assegurar o funcionamento das
actividades. E sem dinheiro para suportar os custos de água, luz e papel
higiénico, com o ministério a apertar o cinto orçamental ao limite. Nos
hospitais, os atrasos nos pagamentos amontoam-se e batem recordes. Estão em
causa horas extraordinárias, a reposição de medicamentos, a liquidação de
despesas normais de funcionamento. Nos transportes, como explica José Manuel Fernandes, observa-se à deterioração rápida da
qualidade dos serviços do Metro de Lisboa, sem fundos para pequenas reparações.
E, imagine-se, sem sequer
capacidade de emissão de novos bilhetes. Na economia, o investimento público
caiu acentuadamente para níveis impensáveis, em nome do cumprimento da meta do
défice, quando, ainda há um ano, se prometia que por ele passaria a recuperação
económica.
Quem acompanhou o debate
político nos anos da troika recordar-se-á das pesadas acusações que situações
análogas valeram ao então governo PSD/CDS – enquadradas por centenas de dias de
greves, pressão mediática constante e debates inflamados pelos deputados da
esquerda parlamentar. Ora, onde estão esses deputados hoje? Sentados na cadeira
parlamentar, mas calados. Onde estão as greves diárias contra os apertos
orçamentais? Foram convertidas em silêncios e ocasionais protestos simbólicos.
E onde estão as notícias nos jornais? Foram remetidas a rodapés, porque os
jornais seguem as polémicas e, em 2016, ninguém está a polemizar. Escrevi-o este Verão e recupero: com PS no governo, não foram apenas BE e PCP que mudaram, mas
também jornalistas que, cobrindo temas sociais, abdicaram do dramatismo –
parece que, em Portugal, deixou de haver fome, pobreza e emigração. Enfim, tudo
o que justificava gritos agora exige sussurros.
Isto diz muito acerca da
habitual hipocrisia partidária. E explica muito acerca da qualidade e da crise
do jornalismo português. Mas informa ainda mais sobre uma dimensão demasiadas
vezes esquecida do debate: com uma sociedade civil fraca, a iniciativa política
fica refém das corporações. Quem as controlar dominará o debate público,
definirá o que é polémico, decretará o que é politicamente legítimo e, se
necessário, obterá tolerância perante a sua incompetência governativa. E quem
as controla é a esquerda de PCP e BE. O segredo do equilíbrio da geringonça
está aí: na CGTP e na mordaça sindical. Ora, isto até pode ser muito jeito ao
PS e aos seus parceiros, mas a médio prazo arrasta duas consequências.
Primeiro, a troca da
perseguição do Bem Comum pela perseguição dos interesses corporativos. Não é
inócuo entregar as preocupações sociais às corporações que, politizadas,
assumem o controlo do debate público em benefício dos seus próprios interesses
políticos – e não, como ingenuamente muitos imaginam, em prol da resolução de
problemas sociais. Tem dúvidas? O raciocínio é elementar: se, aos olhos das
corporações, uma mesma situação varia em gravidade em função da cor partidária
do governo, então o que realmente inquieta as corporações não é a situação em
si mas, efectivamente, a orientação política e partidária do governo. A
alteração comportamental da CGTP e dos seus sindicatos, actualmente movidos por
uma inovadora compreensão para com o governo, não deixa dúvidas quanto às suas
motivações.
Segundo, entregar o debate
público às corporações é dar força à sua orientação política (afecta
maioritariamente ao PCP) e, assim, alterar o equilíbrio de forças do regime. É
que, se a legitimidade política está nas mãos das corporações e as corporações
estão nas mãos da esquerda, então através dessas corporações a esquerda
adquiriu um monopólio natural de validação das suas políticas – o que dificulta
o exercício do poder pela direita. No PSD e no CDS, há que perceber e aceitar
isso. Eis a barreira que, mesmo vencendo eleições, a direita já não conseguirá
furar. Eis a regra não-escrita do regime que, em 2016, a geringonça consagrou.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 4-10-2016
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