Na televisão, vi gente aparentemente responsável rememorar a “ternura” e a “generosidade”
de Fidel, dito “um sedutor”. Não sei se a pulsão erótica despertada por um
barbudo com botas e farda desempenha um papel nisto
Alberto Gonçalves
Morreu um ditador brutal que oprimiu o próprio povo. A
frase pertence a Donald Trump e, no conteúdo e na dimensão, é o obituário
perfeito de Fidel Castro. Infelizmente, é também um caso raro de acerto entre o
festim internacional de elogios mais ou menos assumidos ao “líder histórico” e
ao “revolucionário”, as expressões que, nos momentos de contenção, muitos
utilizaram para classificar um mero psicopata.
É assustador que o senhor Trump tenha demonstrado
a lucidez que faltou a quase todos os restantes? Talvez. Mas se nos queremos
aterrorizar de facto nem é preciso sair daqui: para um português com dois
neurónios ou um pingo de vergonha, o entusiasmo que tantos indígenas exibiram
pelo Carniceiro de Havana mostra, com trágica exatidão, o país onde vive e as
pessoas que mandam nele.
Evidentemente, não falo dos que, com maior ou
menor sinceridade, dedicaram a existência a venerar regimes autocráticos e
sanguinários. Não deve espantar ninguém que a menina Catarina do BE lembre o “grande
homem” que cometeu “erros” (e não lembre as perseguições a minorias sexuais e
religiosas). Ou que Francisco Louçã refira a “liderança popular e marcante” de
um “vencedor” (e não refira o destino dos inocentes que derrotou no caminho).
Ou que Jerónimo de Sousa consiga, sem se rir, recordar “uma vida consagrada aos
ideias da liberdade” (e não recorde os campos de “reeducação” e os
fuzilamentos. Nenhuma pessoa civilizada leva tais espécimes a sério, ou espera
deles qualquer vestígio de apreço genuíno pela democracia. O pior não é isso.
O pior é ver alegados democratas contorcerem-se
todinhos para disfarçarem a devoção que Fidel lhes suscita. O prof. Marcelo,
que voou a tempo de conhecer o vulto, é apenas um exemplo. O dr. Sampaio é
outro. Na semana passada, o ex-presidente da promissora República assinava um
texto contra o populismo. Nesta, desfaz-se em salamaleques ao falecido
criminoso: “As pessoas não podiam ignorar a ditadura, mas aquela figura era de
uma grande simpatia.” O primitivismo cruel do raciocínio – comparável a notar
que “aquilo do Holocausto maçava um bocadinho, mas o Adolfo animava um serão de
bisca lambida” – define o dr. Sampaio.
Para nossa desgraça define igualmente as resmas de
políticos, diplomatas, comentadores e jornalistas que nos últimos dias babaram
nos media considerações suaves acerca
de um indivíduo que, para eleborar um pouco a sentença do sr. Trump, matou
dezenas de milhares de dissidentes, subjugou durante décadas os sobreviventes à
miséria e, no meio de intermináveis discursos alusivos aos méritos do
socialismo, lá arranjou maneira de acumular 800 milhões de dólares. Na
televisão, vi gente aparentemente responsável rememorar a “ternura” e a
“generosidade” de Fidel, dito “um sedutor”.
Não sei se a pulsão erótica despertada por um
barbudo com botas e farda desempenha um papel nisto. Sei que é escusado procurar
a moral da história. A mora é nula. E a história é a do profundo desprezo das “elites”
(ai, ai) caseiras pela liberdade com que enchem a boca. Por azar, as cabeças
continuam vazias.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, 30-11-2016
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Sábado, 30-11-2016
Digitação: JP
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