José Manuel Fernandes
Chegou o momento de assumir que há muito
jornalismo e muito comentário emproado que partilha com as elites políticas o
mesmo tipo de complexo de superioridade que tem aberto o caminho aos
populistas.
Dissolver o povo e
eleger outro? A pergunta fecha um poema sintomaticamente intitulado “A
solução” escrito por Bertolt Brecht no ocaso da sua vida, quando a revolta dos
trabalhadores alemães contra o “governo dos trabalhadores” em 1953, na Alemanha
de Leste, e a brutal repressão que se seguiu, o deixou dilacerado e confuso. É
natural que, nos dias que correm, muitos também andem dilacerados e confusos,
mas a sugestão de Brecht não era para levar a sério – até porque era dirigida ao
dito “governo dos trabalhadores”.
Em dias complexos e
imprevisíveis a prudência recomenda antes a humildade, a inteligência
obriga-nos a fugir das ideias feitas e o mínimo de sensatez leva-nos a
desconfiar de respostas simples ou de visões conspirativas. Pelo que, mesmo não
sendo eu daqueles que pensam que o povo nunca se engana, continuo a pensar que
residindo a soberania no povo temos de respeitar a sua vontade. E que se esta
porventura é esdrúxula, então temos de tratar de compreender como se chegou a esse
ponto e, depois, como se inverte essa situação.
Naturalmente que tudo isto se
torna mais difícil quando explicam todos os males do mundo como se estes fossem
fruto de maquinações ocultas (“Há uma conspiração de extrema-direita a nível
internacional, muitíssimo bem pensada, bem planeada e que vem sendo executada
passo a passo”) e se acha que se pode desafiar a natureza das coisas, como se a
lei da gravidade não se aplicasse de igual forma ao algodão e ao chumbo (“O
Facebook e o WhatsApp servem-lhes tudo de bandeja e levam-lhes as ovelhas às
mesas de voto, como cordeirinhos dóceis ao matadouro”).
Estas duas frases são de
Miguel Sousa Tavares (MST) e de um texto cujo título, Calem-se: o povo é quem mais ordena, é em si mesmo o
reflexo da tragédia de um jornalismo e um comentariado que têm preferido meter
a cabeça na areia em vez de tentar perceber e, sobretudo, de reconhecer
que algumas das chaves de leitura que antes ajudavam a perceber o mundo têm
hoje menos validade. Ou não têm mesmo validade nenhuma.
Valerá a pena explicar que
Steve Bannon (o estrategista da campanha de Trump) não teve nada a ver com a
campanha de Bolsonaro? Valerá a pena recordar que as redes sociais começaram
por ser óptimas quando ajudaram a eleger Obama, quando alimentaram a campanha
de Bernie Sanders ou quando desencadearam a “Primavera árabe”, e só passaram a
ser o diabo depois de terem sido utilizadas por Trump e agora por Bolsonaro?
Julgo que não, que seria chover no molhado, e por isso não vou perder tempo por
aqui. Vou ao fundamental.
E o fundamental por hoje é o
corte entre aqueles que se viam como as elites capazes de iluminarem o povo e o
povo propriamente dito. Foi para esse corte que João Miguel Tavares
alertou no artigo que tanto irritou MST, como foi sobre
esse corte que também refletiu de forma muito ponderada Helena Garrido.
Sousa Tavares recorre a um
filme, de resto magnífico, “Os Despojos do Dia”, para ilustrar a sua tese sobre
o papel das elites. O exemplo é infeliz – trata-se de uma defesa do poder da
aristocracia por contraponto ao poder do povo ignaro – e a citação ainda mais
infeliz é, pois no filme o aristocrata não faz apenas uma pergunta ao mordomo
(protagonizado por Anthony Hopkins), mas sim três, e nenhuma delas é, como
pretende MST, sobre inflação (há uma que é sobre o padrão-ouro). Enfim,
detalhes, que só cito para que não fique fora do contexto a frase com que
remata o texto, e que remete para a incapacidade do mordomo responder à
pergunta que lhe era feita: “Só falta querer retirar o direito de voto àqueles,
como eu, que sabem o que é a inflação mas não frequentam redes sociais”.
Partamos do princípio que MST
também sabe o que foi o padrão-ouro e passemos à segunda parte, ao orgulho de
não frequentar as redes sociais. Ao nojo de sequer abordar o tema. Ao orgulho
de proclamar que nunca ali se foi.
De novo fujo ao tema de fundo:
este artigo não é sobre redes sociais. É sobre não querer compreender, é sobre
não querer sair das suas certezas confortáveis, é sobre não querer sequer
escutar. E por isso é tão significativo termos alguém que acha que pode
fazer-se ouvir ignorando uma das principais ágoras da atualidade, precisamente
as redes sociais. Pior: alguém que não quer saber o que aí se diz, o que aí se
comenta, o que se passa nesses lugares que são parte daquilo que é o espaço
público dos nossos dias. É caso mesmo para perguntar se MST sabe o que é o
WhatsApp e se já percebeu porque foi que o chefe de gabinete de Azeredo Lopes
usou esta rede social para lhe telefonar a dar conta da combinação para a
devolução das armas de Tancos. E se já reparou que estamos a falar precisamente
da mesma aplicação que no Brasil foi tão utilizada pelos adeptos de Bolsonaro.
Felizmente a maioria dos
jornalistas sabe que tem de estar onde estão as pessoas, e por isso não ignoram
as redes sociais. Mais difícil é, muitas vezes, saírem do seu casulo de ideias
feitas, do seu círculo de amizades em que todos dizem o mesmo e pensam o mesmo,
ou simplesmente terem capacidade para perceber que há um mundo diferente do seu
e dos grupos de pressão que têm acesso privilegiado às redações.
Aquilo a que chamamos
populismos tem muitas origens, mas por regra um ponto comum: um discurso contra
as elites no poder. Elites políticas, as mais visíveis. Elites económicas, as
que mais facilmente se gosta de atacar. Mas também elites comunicacionais. E se
muitos líderes populistas procuram apresentar-se como falando “em nome do
povo”, seja lá o que isso for, a verdade é que exploraram a sua oportunidade,
ocupando-se por regra de temas ignorados ou subvalorizados por essas mesmas
elites. As políticas, mas também as mediáticas.
Quando hoje constatamos que
muitas pessoas têm como primeira porta de acesso à informação as redes sociais
– quando não mesmo a única porta de acesso –, quando verificamos que isso
acontece mais entre os mais novos, quando vemos o espaço mediático a
pulverizar-se, jornais a desaparecerem, canais de televisão a perderem
audiência, não podemos colocar todas as culpas nas novas tecnologias e em novos
hábitos de consumo de informação. A verdade é mais dura – e a verdade é que o
jornalismo mainstream também tem sido um dos derrotados em
muitas das eleições e referendos dos últimos anos, e poucos estarão dispostos a
admitir que também as suas estrelas mediáticas se fecharam em torres de marfim
com pouco ou nenhum contato com os problemas das pessoas comuns, quando não
vivem centradas em agendas particulares ou em ativismos de trazer na
lapela. Mas essa é dura realidade.
Portugal, país pequeno em
vários sentidos, suporta mal a diferença – e o jornalismo não escapa a essa
regra. No caso da eleição brasileira o que havia a fazer era tudo o que fosse
possível para denunciar, ridicularizar, encurralar, se possível derrotar o
candidato “fascista” Jair Bolsonaro, numa cacofonia de que era proibido sair.
Pior: fora deste quadro tudo o que fosse procurar perceber o que conduzira o
Brasil à escolha entre dois males maiores não importava – era colaboracionismo.
E foi com esta narrativa no subconsciente que se fez a maior parte da cobertura
da campanha na maioria dos órgãos de informação, com raras e honrosas
excepções.
Os prevaricadores foram
levados para o pelourinho dos fazedores da opinião dominante, e naturalmente
que trataram de lá colocar o Observador. Os leitores fizeram o contrário: em outubro
o Observador teve o melhor mês de sempre em número de leitores e número de sessões.
De resto, faço só uma
pergunta: quantos jornalistas já experimentaram falar com os brasileiros que
vivem em Portugal e que, de forma esmagadora (cerca de dois terços), votaram em
Bolsonaro? Já experimentaram perguntar-lhes o que acharam de muito do trabalho
das nossas televisões? Garanto que seria instrutivo.
O que me faz regressar ao
ponto de partida. Se não pretendo dissolver o povo, muito
menos eleger outro, então tenho de o entender. Tenho de frequentar
os mesmos locais que ele frequenta – físicos e virtuais. É que nada terei a
dizer de útil se não entender porque é que alguns eleitores votam contra aquilo
que penso serem os seus melhores interesses. Os deles e os da democracia.
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador,
7-11-2018
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