Aparecido Raimundo de
Souza
FICASSE ALGUÉM DOENTE NO PEQUENO VILAREJO de Santa Eugênia de Jesus, a quase mil quilômetros da civilização mais
próxima, o farmacista Vivelino Aveludado, dono do único boticário existente,
vinha com o remédio certo:
Supositório. Não há
nada igual...
Fosse uma dorzinha de
cabeça ou de barriga a cônica e sólida figura aparecia do nada, na hora, como
se esse medicamento representasse a alternativa mais correta e indicada de
cura.
Noventa e dois anos
depois, contudo, o velho prático caiu acamado. Sem um especialista à altura, a
família mandou chamar o Doutor Rolando Escadabaixo, um geriatra renomado que
morava em Brasília, capital do país. Para ver seu paciente, o médico precisou
viajar os mil quilômetros até chegar aquele fim de mundo onde Judas havia
perdido, além das botas, a paciência de Jó.
Três dias depois,
clínico e doente ficaram frente a frente.
E aí, seu Vivelino, o
que está sentindo?
- Nem queira saber,
doutor Rolando: dores na nuca, nos peitos, na barriga, nos rins e nas costelas.
Até meus pensamentos incomodam...
- O que o senhor, como
entendido no assunto, acha que seja todo esse leque de incômodos que o
atormenta?
- Complicações da
velhice. Afinal, não sou mais nenhum garoto desses de calças curtas que andam
por aí...
- Qual o quê! O
senhor, embora tenha noventa e cinco primaveras, está com uma aparência
espetacular. Melhor até que eu, ou qualquer outro da sua idade. Bem, vamos
auferir a sua pressão. Por falar em pressão, estava pensando em receitar para o
senhor um...
- Antes de qualquer
coisa, uma pequena correção na idade: noventa e dois. Esses três a mais são por
sua conta. Continuando, o senhor estava pensando em...?
- Aplicar...
- Nem que a vaca tussa
doutor. Tire meu caneco fora dessa...
- Ei, espere um
minuto: nem acabei de falar...
Risos.
- Nem precisa. Pela
sua cara, posso imaginar...
- O que tem a minha
cara?
- O senhor quer que
todos os meus familiares e amigos caçoem de mim?
- E por que me
prestaria a desejar que os seus amigos, sua esposa ou seus filhos motejassem da
sua pessoa?
O acamado pediu que o
clínico chegasse mais perto.
- Estão achando e
confesso que também penso igual. O senhor vai me aviar uma dose cavalar de
supositórios...
O asclépio soltou uma
estrondosa e alegre gargalhada. Embora estivesse muitas léguas distante daquelas
paragens, sabia da legendária e fantástica história dos supositórios, muitas
vezes usados por Vivelino em ocasiões, na maioria das vezes, indevidas e
desnecessárias.
- Não falei? Pelo seu
riso fácil, pelo seu ar de deboche, concluo que veio até aqui para se vingar.
- Me vingar?
- Sim. Deve ser
conhecedor das minhas proezas. Todos sabem, até os cachorros cochicham.
Portanto, não se faça de besta. E antes que diga qualquer coisa, quero
esclarecer um ponto que considero primordial. Realmente, durante toda a minha
vida, enquanto estive à frente da drogaria, ousei receitar, a quem me procurava
esses suaves cavitários retais. E, sinceramente, não me arrependo.
O galeno diante dessa
conversa fora de esquadro, ponderou. Ou, pelo menos, tentou:
- Veja bem, seu
Vivelino, não é minha intenção mentir para o senhor. Sei realmente de tudo. Já
me contaram. Inclusive, chegou aos meus ouvidos, o incrível relato do elefante
de um circo que, certa vez, passou por aqui...
O representante da
medicina continuou a dar estrondosas gargalhadas. Com tanta intensidade, que
precisou uma das filhas de moribundo, vir lá de dentro com um copo de água.
- Seu Vivelino... esta
é boa... nem o elefante... nem o elefante escapou?
- Ria, ria o quanto
quiser. Mas vou logo avisando... nada de supositórios...
- E por que esta
recusa tão veemente? Não vejo nada de mal. Um santo remédio. O senhor, aliás,
que o diga...
- Pode ir tirando o
seu cavalinho da chuva...
- O senhor não
receitou para todo mundo aqui da cidade?
- Perfeitamente.
- E por que nesta
altura do campeonato não provar do seu veneno? Digo do seu próprio remédio?
- Doutor Rolando, com
todo respeito: pegue a sua maleta, seu aparelho de medir pressão e dê o fora...
- Seu Vivelino, por
favor, não fique zangado. Sou seu amigo. Quero seu bem-estar. Me referi ao
supositório, mas foi só uma brincadeirinha. Procure não se exaltar. Poderá
agravar seu estado.
- Quer saber? Não
estou zangado. Confio plenamente no senhor e nos seus préstimos. Por esta
razão, vou lhe contar as minhas aventuras. Não sei com que ou quais histórias
lhe fantasiaram por aí o escutador de novelas, mas a verdade é uma só e o
senhor vai conhecê-la agora. Puxe cadeira, peça um café a uma de minhas meninas
e sente que o papo é longo.
O médico obedeceu,
enquanto colocava o estetoscópio em volta do pescoço e auscultava o peito magro
do ancião. Vivelino começou, então, a sua narrativa:
- Quando abri as
portas da farmácia, em mil novecentos e puta que pariu, tinha vinte anos. Era
assim como o senhor. Jovem e meio peralta. Cabra novo, mulherengo e endiabrado.
Muito endiabrado. Gostava de sacanear as pessoas. Desta forma, quando chegava
alguém, no balcão, eu vendia o remédio certo, que vinha prescrito na receita,
e, para completar, de lambuja, ministrava uns supositóriozinhos por fora. No
fundo, queria mesmo ver o sujeito, de quatro, com a bunda virada para o meu
lado... implorando... pedindo, por tudo quanto fosse sagrado, que introduzisse
o troço devagar. Divertia um bocado meu lado perverso...
- Em linhas gerais,
não existe por estas bandas uma vivalma que o senhor não tenha enfiado um de
seus supositórios?
- Por certo. E digo ao
senhor, sem medo de errar. Conheço cada bundinha desta gente humilde aí fora,
como a palma da minha mão.
- Soube no hotel onde
estou hospedado que o senhor não perdoou a professora Isadora que, por sinal,
chegou a ser uma de suas principais mentoras. Tampouco a diretora do grupo
escolar?
- Pois é...
- Ao menos, como o
senhor é um católico fervoroso, o padre Moisés, um pouco mais avançado na
idade, a quem, aliás, me deu a conhecer assim que pisei aqui em Santa Eugênia,
escapou ileso?
- Qual o quê!
Igualmente o tonto do Moisés levantou a batina e mandei brasa em seu furisco
clerical...
- Como foi o episódio
com o juiz? O rapaz do táxi que me trouxe da hospedaria até sua propriedade
disse que o senhor fez uso dos supositórios. Meu Deus! Até o homem das leis
entrou na dança?
- Deveras. Fiquei
furioso com ele. Puto nos panos. Por isto, na primeira oportunidade, fui às
forras. Principalmente depois que minha irmã teve uma sentença desfavorável e
acabou perdendo uma casa que papai deixou para ela. Era herança, meu amigo. O
doutor Fernando Mira Cinco, sempre foi e continua sendo fechado e circunspecto,
além de extremamente chato e arrogante. Todavia, por duas vezes, só por duas
vezes entrei... entrei na intimidade do pandeiro dele, com vontade, com gana.
Ao contrário da mulher do sujeito, dona Catarina Mira Cinco. Com essa bucólica
dama eu perdi as contas. Acho que o negócio dela, no fundo, se resumia em dar a
maquininha de picar bosta para mim. Como não podia aparecer de cara limpa -,
afinal, necessitava manter as aparências da respeitável esposa da autoridade máxima
do judiciário, não tinha claro, como marcar bobeira. Por essa razão, quero
crer, se contentava com os meus supositórios. Sem mencionar um detalhe: Dona
Catarina Mira Cinco vivia metida aqui em casa. Fale baixo. Assim, unha e carne
com Carminha Dorotéia, minha esposa.
- Quem mais sentiu
no... a quem mais o senhor receitou os milagrosos supositórios?
- Praticamente para
todas as demais criaturas da cidade e agricultores ribeirinhos, com exceção do
seu Felício, da funerária. O desgraçado nunca adoeceu. Nem gripe tive o prazer
de curar no filho das unhas.
- Alguém, em especial,
tirando o juiz, que o senhor tenha vexado os brios através dos supositórios?
- O Calisto, nosso
dentista. Infelizmente faleceu, ano passado. Lembro que numa das vezes em que
me procurou, enfiei um supositório nele, com tanta força, que o bicho abriu a
boca e gritou feito um possesso. Credo, que Deus o tenha! Boa alma. Muito
prestativo.
- Se o senhor gostava
dele, por que fez o infeliz passar por tamanho vexame?
- Porque certa vez me
arrancou um dente praticamente sem anestesia. Vi estrelas. Uma semana de rosto
inchado. Eu jurei: filho de uma boa mãe, seu dia haverá de chegar. E, realmente,
o revide pode ser saboreado...
- Nunca nenhum cliente
reclamou?
- Bem, uma vez o
Fungado Toledo, um fazendeiro aqui da região quis me processar.
- E levou a termo seu
intento?
- Quase. Cismou que eu
estava de olho na filha mais nova dele, a Talitinha. Imagine!
- Cá entre nós,
estava?
- Na menina não, mas
na retaguarda dela, sim. Uma bunda... meu amigo, uma lasca de rabo pra ninguém
botar defeito. Esperei um bom tempo. Belo dia, ela se machucou num acidente
junto com um tio. Veio parar aqui, com a mãe. Na lista de remédios mandei
brasa: duas caixas de supositórios, um a cada duas horas. Conclusão: meu tiro
saiu certeiro. Dona Culatra, perdão, dona Ricota, a mãe, não sabia como enfiar.
O pai, homem rude e divorciado, portanto, dessas coisas da medicina, entendia bulhufas. Por derradeiro, a mimosa flor caiu nas minhas
garras.
- O senhor aproveitou
e foi com tudo?
- Com tudo o que tinha
direito. Enfiei não só na abertura apertadinha dos fundos da pobre donzela,
como mandei supositório via canal vaginal. Isso logicamente gerou uma porrada
de sessões, idas e vindas, até meu comércio. Numa dessas, o pai ficou meio
desconfiado, pintou junto com a Talitinha e a coisa quase se complicou. Fungado
Toledo me falou umas besteiras, buzinou feio nos meus ouvidos. Não me dei por
vencido. Continuei. Na derradeira introdução que fiz, a bichinha chegou a
peidar... perdão doutor... que coisa horrível... a beldade soltou algumas flatulências
meio que desordenadas. Não deveria estar lhe contando estas maldades.
- Estou adorando...
abra a boca.
- Para quê?
- Vamos ver como está
a sua febre.
- Mas doutor, diga aí:
o termômetro não se coloca não é embaixo do braço?
- Abra a boca, seu
Vivelino.
- Faço o que o senhor
quiser doutor. Tudo. Porém, jamais me peça para descer a cueca e ficar de
quatro.
- Por certo, concluo,
nesta posição, o senhor ministrava os supositórios?
- Certamente.
Companheiro Rolando, certamente. De quatro, o trocinho entrava rasgando. Saiba,
contudo, seu doutorzinho de merda - desculpe, sem ofensa -, nesses meus belos
noventas janeiros, nunca entrou nada em meu anel de couro. Jamais! Por ali,
quero dizer, por aqui, só saiu. Entendeu bem? Só saiu. Pretendo, pois, morrer,
e creia, baterei com as doze em direção ao paraíso com o meu roscófi
imaculadamente intocado e virgem.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 27-11-2018
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