Aparecido Raimundo de
Souza
NÃO ESTOU CONSEGUINDO ME ACHAR. Em canto nenhum eu
estou. Já me procurei em casa, em residência de amigos, parentes mais chegados,
no cafofo das duas namoradas, nos lugares onde compro a crédito, no
supermercado, na farmácia, na padaria, no salão onde corto o cabelo e faço a
barba. Enfim, eu sumi, desapareci misteriosamente do mapa. Como se tivesse sido
tragado. Estou diante da vacuidade da minha própria imbecilidade vivendo, ou
melhor, vegetando o desprezível da pior parte da existência humana. O não saber
quem sou.
Tudo aconteceu por
conta da última saída que fiz até à estação do Metrô Barra Funda. Em algum
lugar ali, ou lá, não sei, perdi todos os documentos. Não restou sequer um que
desse conta de mim. Ao menos a carteira de habilitação com uma foto, para
provar que, realmente, eu sou eu. Eu quem? Aparecido, 65 anos, nascido em
Andirá, Paraná, filho de meu pai e da minha mãe, ambos enterrados vivos,
trancafiados na falsa lucidez maçante de uma burguesia truncada.
- Sabe ao menos o nome
de seus genitores – perguntou uma policial do posto de atendimento ao cidadão
que disse ser minha amiga e querer me ajudar?
Meu lado curioso
dentro do inevitável deu sinais de vida.
- Que diabo venha a
ser isto, genitores? Algo que se mastigue?
A estranha ponderou
carinhosa:
- Genitores. Quero
dizer seus pais. Sabe o nome deles?
- Não, respondi seco.
- Dos seus avôs,
prosseguiu ela?
- Deu branco.
- Algum irmão?
- Devo ter, mas não
sei o nome de nenhum, assim de momento...
- Tem esposa? Filhos? Sabe
sua idade?
- Estou mais por fora
que peixe à larga do cardume.
- Estranho!
Concordei com a jovem.
Muito estranho. Além de estranho, esquisito também. Como podia uma pessoa, de
repente – pelo fato de perder a sua carteira com os documentos pessoais ir
junto, de roldão, e escafeder na poeira, sumir de vez, no ar? Nunca vi fato
igual. Nada parecido. Nem aparecido. Parecia loucura. Pensei estar em outro
mundo. O pior, nessa confusão toda – não me recordei de ter sido abduzido.
Virei uma espécie de Holden Caulfield moderno, aquele personagem de J.D.
Salinger evidentemente sem a voz do Apanhador no Campo de Centeio, todavia de
um apanhador de um campo de sem telhas.
Sem telhas, sem capa e sem guarda chuva. Tentei o celular. Não deveria
deixar nada ao acaso. Quem sabe ele não me direcionasse para algum lugar. Qual
o quê! Bateria descarregada.
Procurei daqui,
futuquei dali. Achei o carregador acolá. Ao menos, se alguém ligasse, partiria
de algum ponto menos obscuro. Uma hora depois o troço funcionou. Arrisquei, na
memória um conhecido. Vazia. Ligações. Nenhuma. Efetuadas. Zero. Mensagens
enviadas e recebidas. Neca de pitibiriba. Estou “fu...”. De verde e amarelo com bolinhas da mesma cor.
De repente, o telefone saiu do mutismo. Finalmente me verei longe deste embuste
que o destino me preparou, e voltarei radiante ao mundo de onde nunca deveria
ter saído.
Atendi pressuroso.
- Pronto?
“Quem fala?” –
questionou a voz do outro lado.
- Como quem fala? Sou
eu, o Aparecido.
“Aparecido? Não
conheço nenhum Aparecido. De onde você apareceu?”.
- Como, de onde?
Pergunta besta. O amigo acabou de me ligar.
“Eu, em! Acho que me enganei. Devo ter
digitado algum número errado...”.
- Como é seu nome?
“Fogaça”.
- Como? Sem graça?
“Fogaça cara. Fogaça.
Vou soletrar. F, de família, o de organização, g de galho, a de amarelo,
cedilha de caçarola e novamente a, de amendoeira. Anotou? Fogaça”.
Desliguei. Inútil
gastar vela com defunto fresco. Realmente não me acudiu ninguém com aquele
nome. A policial não desistiu. Fiel até debaixo d’água. Um anjo em meio a esta
cidade imensa e barulhenta. Uma mulher assim me cairia como luvas de pelica.
Tirou uma foto minha com seu celular e passou para seus companheiros. Quase
final de expediente, por volta das seis da tarde, saiu de sua mesa e veio ter
comigo cochilando na recepção.
- Eureka!! - Berrou a
dita numa euforia ímpar. - Meu prezado amigo, se alegre. Trago boas notícias.
Achei você. Sei quem é e onde mora. Pedirei autorização a meu superior. Vou
levá-lo em casa.
- Como fez isto?
- Lembra que tirei uma
foto sua?
- Tirou? - E aí? Seu
celular se assustou comigo e também criou pernas?
- Nada disso,
engraçadinho. Agora sei quem é o que faz e onde mora.
- Legal! E onde eu
moro?
- Jabaquara.
Algum tempo depois, em
meu loft, me sentei, em equilíbrio no braço de um sofá azul de dois lugares. Na
frente dele, uma televisão tela plana. Ao lado, em contraste, um toca-discos do
tempo em que as pessoas andavam de bicicleta numa roda só. Nada aqui me pareceu
familiar. Tive uma ideia. Resolvi bater no apartamento do meu vizinho. Ou
vizinha, sei lá. Toquei a campainha. Surgiu, no umbral, uma linda mulher. E que
mulher!...
Um pedaço de mau
caminho da minha altura, uns vinte e cinco anos, tão bonita e encantadora
quanto a policial. Por momentos fiquei com ares de apatetado. Aparvalhado,
fraco como Oswald de Andrade quando deu seu “último passeio como tuberculoso,
pela cidade, de bonde”. A deidade
possuía os olhos plissados, enfiados em órbitas opíparas e exuberantes,
terminavam enfeitando uma tez de princesa dos tempos de Cinderela. Vestia uma
blusa do Flamengo e um shortinho de lycra que lhe escancarava o umbiguinho de
fora além de um resto espetaculoso que delineava pecaminosamente as outras
partes secretas de seu corpo perfeito.
- Puta que pariu. O
senhor de novo?
- Como, de novo?
- Bateu aqui às seis
horas. Despertei sobressaltada...
- Eu bati aqui?
- Não, seu panaca, o
Homem Aranha. Claro que o senhor. O único vizinho chato e pegajoso que tenho e
não me dá sossego.
- Não me recordo de
ter vindo aqui! E também me foge à memória me dirigido ou falado à sua
pessoa...
-Mas veio e falou... e
ainda me deu uma cantada idiota. “Nossa, você é a pitada de açúcar que faltava
no meu café com leite”.
- Esquece essa parte.
– Ralhei. - O que eu queria exatamente?
- Me torrar o saco.
Escuta o que vou dizer. Dá pra errar meu apartamento?
- Fala sério, moça. O
que eu queria? O que eu procurava exatamente?
- Último aviso: se o
senhor voltar a me importunar ligarei no mesmo instante para a polícia.
- Polícia? De novo a
polícia?
Recebi, em cheio, uma
tremenda e violenta portada na fuça. O estrondo se fez tão pavoroso que
estremeceu os latões de lixo no corredor. Sem falar no elevador atemorizado,
coitado, se refugiou no décimo segundo com receio de tomar uns pescoções.
Engraçado! Até então não havia percebido. Havia um aviso logo abaixo do olho
mágico da minha vizinha encantada. Informava, numa grafia perfeita: “Não bata a
porta. Ela está segurando a parede”. Este gesto da minha moradora contígua
restou cabalmente fulminante. Decisivo. Ultrajante. Acabou com a minha
autoestima. Fiquei literalmente para baixo, pior que nota de falecimento em
rodapé de jornal interiorano. Deprimido. Deprimidérrimo! Quem sou? E agora,
quem poderá me ajudar? Quem realmente
sou eu? Até agora...
Voltei em meus passos,
me tranquei a sete chaves e um ferrolho velho que cantou antes de entrar em seu
buraco. Revirei a casa de pernas para o
ar. Nada, nada que delineasse a minha silhueta – que mostrasse meu rosto, ou
que me fizesse um ser igual aos demais. No espelho do banheiro encontrei um
sujeito arquétipo, de perfil vulgarizado, barbudo, olhos vermelhos, me
espiando, amedrontado. “Aquele ali - disse para a escova de cabelos jogada
perto da bacia da privada - não é o Aparecido que conheço”. Apalpei as maças da
face deformada, arregalei os olhos, balancei a cabeça, nada. “Não sou – repeti
cinco ou seis vezes – não sou eu aquele sujeito refletido”. Voltei à sala.
Separei as cortinas. Abri a janela. Espiei para cima. Contemplei o infinito
acima. Uma traição momentânea de um céu reverso e cheio de estrelas cintilantes
se depunha avesso ao meu drama pessoal. Os prédios em derredor do meu se
quedaram numa paisagem híspida. Um avião passou em direção ao aeroporto. Nesse
interregno, batidas na porta me trouxeram à realidade.
- Quem é? – Perguntei
encostando o ouvido à altura da maçaneta.
“Abra, é a polícia” –
gritou uma voz lá do corredor.
- Polícia? O que eu
fiz de errado para a polícia estar aqui? Seria a vizinha?
“Vamos contar até
três. Abra ou arrombaremos. Um...”.
- Polícia? Polícia?
Como vou explicar quem sou? Cadê meus documentos?
“Dois...”.
Procurei ganhar tempo.
- O que vocês querem?
“Abra...”.
Ouvi novas pancadas.
Não propriamente pancadas. Porradas mesmo. A porta estava sendo arrancada. Em
outras palavras, arrombada. Os policiais entraram, invadiram, se agigantaram
numa gritaria só. Oito ao todo. O que parecia ser o chefe ordenou: “mãos na
cabeça, deita no chão, de costas, quieto, não se mexa ou morre”.
Morrer deve ser (e
acredito piamente nisso) uma transição inoportuna, veloz, como um tombo
repentino e inesperado entre a lavanderia e o quarto, ou entre a sala e a
cozinha, com a diferença que, no tropeço comum, a gente se levanta e na
embocadura da morte, a pancada recebida não dá nenhuma opção de troca nos
botões do menu.
“Três!...”.
Dei um salto da cama
como um rato faminto que se assustasse com um gato mais esfomeado que ele na
busca pelo mesmo prato. Acordei meia noite em ponto, em sobressalto. A camisa
molhada, o suor a escorrer pelos poros e o tétrico atroz e infernal fazendo meu
coração bater acelerado, como se quisesse saltar boca afora.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De São Paulo Capital. 23-11-2018
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