Aparecido Raimundo de
Souza
BIGORNINHO JÚNIOR
CHEGOU DA ESCOLA jogou, de qualquer jeito, os cadernos em cima do aparelho de
som e se dirigiu ao homem que lia um jornal sentado diante da televisão ligada
falando sozinha para as paredes. Dividia os pés ensapatados e sujos de terra com
um gato preto que dormia tranquilamente recostado sobre uma almofada vermelha.
- Pai, o senhor
poderia me explicar qual é a função do aparelho reprodutor do homem e da
mulher?
Bigórnio ficou
furioso. O filho vinha da rua feito um furacão e, da maneira mais malcriada
possível, interrompia a sua leitura, como se isso fosse à coisa mais natural do
mundo.
- Eu? Logo eu?
- Sim Pai. Tem mais
alguém aqui?
- Tirando o gato, a
televisão.
- Ela não é gente,
Pai. Nem o Berlioz.
- Mas fala. Não está
ouvindo?
O guri pegou o
controle remoto e acionou o botãozinho que indicava desligar. Proft.
- Pronto.
- Falta o bichano.
- Ele não está nem aí.
- Sem educação. Estava
assistindo...
- Deixa de conversa
fiada, Pai. O senhor lia o jornal.
- Está me chamando de
mentiroso?
- Claro que não, mas é
verdade!
- O quê? - Seu sem
vergonha filho de uma égua. Onde aprendeu tanta falta de educação e desrespeito
aos mais velhos?
- Com o senhor.
- Não me tire do
sério, seu pirralho, ou te meto a mão no meio da fuça. Vá se livrar desse
uniforme ridículo.
O garoto parecia
resoluto na sua determinação de não arredar da frente do pai.
- Primeiro me fale dos
tais aparelhos.
- Aparelhos? Que
aparelhos?
- Os reprodutores do
homem e da mulher.
- Para que quer saber?
- Preciso apresentar
um trabalho escrito em forma de redação até depois de amanhã.
- Vá atrás de seus
amiguinhos Tiago e Huguinho.
- Estão de férias Pai.
Viajaram.
- Bem feito. Você não
estuda! Só quer saber de jogar bola. Por isso vive de recuperação. Tem mais é
que puxar carroça, como eu. A propósito: no seu aniversário vou lhe dar um
burro de presente.
Bigórnio passou a mão
na almofada onde descansava os pés e a atirou, com gato e tudo em direção ao
filho. Por pouco. Passou raspando. O quase estava do lado do moleque. Quem não
gostou muito da ideia, certamente o pobre do animal. Arrancado do sono, de
maneira brutal, saltou apavorado sumindo em direção à cozinha.
- Filho da mãe. É isso
que aprende naquela droga de escola?
- O que o senhor
espera de um “futuro carroceiro?”.
Foi à gota d’água que
faltava para transbordar o copo. O sujeito, um baita grandalhão sanguíneo, o
rosto queimado, tostado pelo sol escaldante, se assemelhava a figura de um leão
enjaulado, se moveu veloz, como se, de repente, a porta da grade fosse aberta
por alguém invisível. Levantou de um
salto, bufando, possesso. Amassou o jornal, pisou com força no que restou dele,
e saiu à cata do respondão. Bigorninho Junior, por sua vez, não perdeu tempo.
Nem podia.
Deu linha à pipa.
Berrando feito um adoidado, Bigórnio, cheio de razão e – emputecido com o guri
– partiu em seu encalço. Arrancou, nessa empreitada, o cinto da calça.
- Vou te mostrar com
quantos paus se faz uma jangada.
- Depende do tamanho
da embarcação Papito.
- Venha cá, seu filho
de uma vagabunda desnaturada. E não me chame de papito. Odeio esta palavra.
Claro que Bigorninho
Junior não obedeceu à ordem. Era alguma besta? Com o pai em seus calcanhares,
teve uma ideia brilhante. Danou a circular em derredor de uma mesa de jantar
enorme, acompanhada de seis pesadas cadeiras que ficava centrada, bem no meio
da sala. Seus movimentos se igualavam a elásticos.
Se conseguisse cansar
o pai -, por sinal tinha problemas de coração -, logo ele desistiria daquela
peleja estapafúrdica. Assim pensando, não parou. Uma volta, duas, cinco, oito,
dez...
- Pare desgraçado.
Mais uns passos e boto pra fora os bofes!
- Só se o senhor
largar o cinto.
- Cinto? - Que cinto?
Não estou vendo nenhum cinto.
- Engraçadinho. Esse
que está em suas mãos.
- Ah, é mesmo. Como
foi que chegou até elas?
Entrou, em cena, uma
senhora de idade bastante avançada, os cabelos brancos e ralinhos, caminhando
lentamente apoiada numa bengala. Na mão esquerda, a altura do coração, aninhado,
sobressaia um assustado gato preto (Berlioz, o bichano que voara a poucos
minutos passados), ainda não totalmente refeito dos rescaldos do sono enquanto
tirava um cochilo em sua almofada vermelha preferida.
- Posso saber o que é
que está acontecendo por aqui?
O menino completou a
última volta e disparou em direção à velhota. Abraçou-se carinhosamente a ela.
A sua tábua de salvação. Apontou dedo em riste para o pai encolerizado. O cara
suava em bicas. Dava a impressão de que teria um piripaque.
- Vovó Candoca, o
Papai quer me bater de cinto de fivela.
A oitentona fuzilou
Bigórnio por debaixo de um par de lentes grossas e antigas.
- Que diabo é isto,
Bi?
- Estou tentando,
ensinar boas maneiras a esta “coisa” que a senhora estragou criando a seu
jeito.
- Esta coisa aqui Bi,
é meu neto. Seu filho. Seu filho, cabeça de bagre. Se Chimarronzina minha
querida e amada filha, que Deus a tenha, estivesse viva...
- Mas não está. Nesta
altura do campeonato, deve consumir sua existência abraçada ao capeta. Vem cá,
seu merda. Solta da barra de sua avó. Seu maricas... veado.
- Maricas e veado é
você seu cachorro vira-lata. Que implicância com o pobrezinho. Tome juízo, seu
idiota. Por que não volta lá pra sua
carroça? Não tem nenhum frete para ser concretizado? Ainda a pouco, me ligou o
Fuzil, do mercadinho. Estava lhe procurando. “Cadê o panaca do seu
genro?”.
Virando o rosto para o
pequeno, contemplou seu semblante com meiga e infinita ternura.
- O que deixou seu pai
panaca tão encolerizado?
- Eu queria que ele me
ajudasse a fazer um trabalho para entregar na escola.
- Ta vendo só seu
palerma. Custava orientar o guri? Ao invés de se dedicar ao infeliz prefere
maltratá-lo. Boçal. Imprestável. Venha com a vovó. Vamos dar um jeito nesta
questão agora mesmo. E quanto a você, vá até lá na cozinha e dê um pouco de
ração e renove a água para o Berlioz.
Nada de fazer sacanagem com ele. Olhe pra carinha dele... tadinho...
Bigórnio, de má
vontade, passou a mão no gato e continuou soltando farpas enquanto rumava para
a área de serviço.
- Se esse menino
crescer assim, “aviadado” pela senhora, vai virar uma linda mocinha. Bilu
bilu... Juaninha quer uma sainha cor de
rosa? Ou prefere que a comadre aqui lhe compre uma calcinha de renda lilás?!
- Não ligue para seu
pai, Bigorninho. É um borra botas. Maldita hora que minha filha deu... esquece.
Venha comigo até o quarto.
***
- O que realmente
deseja saber, meu filho?
- Vovó Candoca, preciso
escrever uma redação sobre o que é e para que servem os aparelhos reprodutores
do macho e da fêmea.
A senhora deu alguns
passos capengas até uma pequena biblioteca que ladeava sua cama. Pegou um livro
de capa cinza e o abriu sobre a cocha azul marinho. Sentou e sinalizou para que
o piá fizesse o mesmo. Folheou algumas páginas até topar com o procurado.
- Aqui, achei. Está
vendo?
Em meio à brochura,
sobressaia a figura de um homem num dos lados da página e, do outro, uma
mulher. Ambos pelados. Minúsculas letrinhas com setinhas amarelas e alaranjadas
explicavam, com riquezas de detalhes, cada função específica no corpo humano.
Com o indicador, a avó
foi deslizando por cima do papel amarelento até se deter num ponto específico.
- Olhe meu filho.
Ponha reparo. Isto aqui é uma varinha mágica. Não é linda?
O pequeno se ateve ao
retrato e caiu na gargalhada.
- Isso ai é um pinto,
vovó Candoca!
- Eu disse varinha
mágica. Que coisa feia chamar isto de pinto... pinto é o filhotinho da
galinha...
O dedo da anciã passou
para a folha ao lado.
- E esta outra, espie
com bastante cuidado, é a cartola.
- A senhora quer dizer
a “buce...”.
- Cartola, filho.
Cartola... E não é bu é bo...
Bigorninho Junior
viajava na maionese, os olhinhos cheios de interrogações. Uma fascinação
instantânea lhe dominava os sentidos.
- Entenda a
matemática, meu querido. - Quando a varinha mágica entra em contato com a
cartola – continuou a antiga na sua explicação comparativa – acontece uma
mágica divina. Você mesmo já viu isto no circo, lembra?
- Eu sei vovó Candoca,
eu sei. Mas da tal cartola saiam flores e pombos...
- E qual é a
diferença?
- Ora bolas, vovó. Se
este pinto aqui entrar nesta “buce...”.
- Bigorninho, preste
atenção. Ai, ai, ai. Sem palavrões. Você é um menino educado, esperto e
inteligente. O xodó da vovó. Raciocine. Se os dois órgãos aqui se juntarem – o
macho e a fêmea – como eu disse, a varinha mágica e a cartola...
- Entendi vovó
Candoca.
- Então, meu lindo. Se
o aparelho reprodutor masculino do homem, repetindo, a varinha mágica, entrar
em contato com o aparelho reprodutor feminino da mulher, a cartola... assimilou
o que vovó Candoca quis dizer?
- Sim, vovó. Entendi.
Agora eu saberei explicar, na minha redação pra professora e para meus colegas,
se for chamado à frente da classe, o que é, para que serve e o que
acontecerá...
- Então diga pra sua
vovozinha. Faz de conta que sou a sua professora. Ou melhor, eu sou seus
coleguinhas sentados. Você lá na frente,
lindo, charmoso. Continue. A varinha mágica entrou na cartolinha e...
Bigorninho não deixou
por menos. Certeiro como uma flecha em direção ao alvo sucintou magistralmente
a sua explanação:
- O pinto, vovó
Candoca... desculpe. A varinha mágica entrará fundo, com tudo o que tem direito
e gozará dentro da cartolinha. Ao invés de pombos e flores, nove meses depois,
“sairá da buce...” desculpe de novo, vovó Candoca. Nove meses depois, sairá da
cartolinha, um montão de bebês.
Título e Texto: Aparecido Raimundo de Souza,
jornalista. De Vila Velha, Espírito Santo. 13-11-2018
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