João Pereira Coutinho
Perante estas duas versões, um ingénuo
perguntará onde mora a verdade. A questão não faz sentido porque Costa foi
verdadeiro em 2010 e em 2018. Seguindo Marx (Groucho, não Karl), os princípios
de Costa dependem da audiência em questão
O BLOCO DE ESQUERDA faz lembrar aqueles matarruanos que, aos
domingos de manhã, vestem a roupa de ir à missa. Usam casaco, camisa e até
gravata. Mas as roupas estão fora do figurino. São demasiado grandes – ou
demasiado pequenas. Em rigor, não são eles que as vestem; são as roupas que os
vestem a eles.
Na última convenção, a roupa
domingueira esteve na farsa da "maturidade".
Segundo se ouviu (e escreveu),
o Bloco deixou a adolescência para trás, apesar da vontade explícita de
nacionalizar tudo o que mexe no País. Agora, quer ser governo – ou, para sermos
rigorosos, distribuir pastas pelos seus ministeriáveis. Mariana Mortágua nas
Finanças, a irmã Joana na Educação, Jorge Costa na Energia e José Soeiro no
Trabalho, disse Pedro Filipe Soares ao Observador.
Esqueceu -se de Ricardo
Robles, o que me parece uma lástima: de toda a galeria, ele é o único que até
hoje mostrou um real talento para alguma coisa.
Claro que, além dos ministros,
Pedro Filipe Soares deixou-nos um pensamento que revela a verdadeira natureza
do Bloco. "Não falamos da direita porque ela não conta para o futuro do
País." Jair Bolsonaro não diria melhor sobre a "petralhada" que
gostaria de fuzilar – ou, com imensa tolerância, exportar para a Venezuela.
Pedro Filipe Soares, que
obviamente não é fascista, prefere rebaixar metade da população portuguesa, na
impossibilidade de a enfiar nos acampamentos do Bloco para efeitos de
reeducação política.
Pessoalmente, prefiro este
ódio viscoso e sincero ao baile de máscaras que o Bloco encenou para alegria
dos crentes.
EU SEI QUE NÃO É FÁCIL ser europeu e pró-americano. O problema,
entenda-se, não está apenas na liderança económica, cultural e militar de
Washington. Está num passado sangrento e humilhante, com os Estados Unidos a
salvarem a Europa de si própria repetidas vezes.
Assim foi na Primeira Grande
Guerra. Assim foi na Segunda. E assim foi depois de 1945 com a NATO e os seus
caridosos mísseis apontados para Moscovo.
Esta folha de serviço alimenta
um ressentimento natural entre os nativos. E Emmanuel Macron, na sua
megalomania perigosa, é o rosto desse ressentimento. Para o presidente francês,
é preciso "um verdadeiro exército europeu". Para quê? Obviamente,
para responder a eventuais ameaças da Rússia, da China e até dos Estados
Unidos.
Colocar estas três entidades
do mesmo lado das trincheiras já seria suficientemente grotesco.
Mas é especialmente grotesco
nos 100 anos do fim da Primeira Guerra – ou, para ficarmos em números redondos,
rasurando a memória dos 100 mil rapazes americanos que tombaram deste lado do
Atlântico.
Antes do Brexit, estes
delírios não teriam grande acolhimento. Mas com Londres fora do baralho, não me
admirava que Marcelo Rebelo de Sousa fosse das raras cabeças reinantes para
quem nenhum exército europeu pode substituir o papel da NATO.
EM 2015, temia-se por aí que o PS se vergasse ao marxismo. Não
aconteceu. Isto, claro, se entendermos por marxismo a teoria e prática do tio
Karl. Se, pelo contrário, ficarmos pela teoria e prática do tio Groucho,
podemos dizer que António Costa é o seu mais perfeito representante.
Aqui há uns dias, Costa
escreveu uma prosa pública contra Manuel Alegre, onde vergastava o bardo pela
sua defesa da tourada. A coisa, anunciava Costa a pingar virtude, não passava
de uma "cultura de violência" e "de desfrute do sofrimento
animal". Estes são os princípios de Costa em 2018.
Mas, em 2010, os princípios
eram outros. E uma condecoração a um forcado amador (decidida por unanimidade
na autarquia lisbonense) levou o edil Costa a considerar José Luís Gomes um
ilustre representante da "arte e vigor", da "sensibilidade e
valentia" que são próprias da "arte taurina".
Perante estas duas versões, um
ingénuo perguntará onde mora a verdade. A questão não faz sentido porque Costa
foi verdadeiro em 2010 e em 2018. Seguindo Marx (Groucho, não Karl), os
princípios de Costa dependem da audiência em questão.
Em 2010, quando compareceu no
Campo Pequeno para medalhar o forcado e assistir à corrida, Costa acreditava na
"arte" e no "vigor". Em 2018, para defender o Governo e
banhar-se em humanismo, a "arte" e o "vigor" passaram a
"cultura de violência".
E se amanhã as circunstâncias
políticas o exigirem, ainda veremos Costa a saltar para a arena e a fazer ele
uma pega de caras. Um gesto que, aqui entre nós, eu pagava para ver.
Título, Imagem e Texto: João Pereira Coutinho, SÁBADO,
17-11-2018
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