Agora a sério (se possível): antigamente a
sujidade da política sofria uma demão de verniz. Nas situações extremas,
varria-se o lixo para debaixo do proverbial tapete. Nos tempos que correm, é
isto.
Alberto Gonçalves
20 ministros? 50 secretários
de Estado? Não me venham com resmungos: os Camarões, que não são melhores que
nós, têm 33 dos primeiros, e sabe Deus quantos dos segundos. Os números, que a má-lingua
condena, apenas demonstram a abundância de gente valorosa que gravita em redor
do Largo do Rato, e que, do alto da sapiência dele, o dr. Costa quis e soube
premiar. Não houve escolhas ao acaso. Houve a consagração de indivíduos (e
indivíduas) cujas proezas os elevam acima do lorpa, perdão, do contribuinte,
perdão, do mortal comum.
Temos governantes idolatrados
por levantar a dívida pública (acima de níveis espetaculares) e apostar na
carga fiscal (a mais espetacular de sempre).
Temos governantes que
investiram o dinheiro que, se pudessem, os cidadãos gastariam à toa para, em
boa hora, salvar a banca de percalços imprevisíveis.
Temos governantes que arruínam
o Serviço Nacional de Saúde com o único – e admirável – propósito de mostrar ao
neoliberalismo capitalista-fascizante o quanto o SNS era bom.
Temos governantes que deixaram
de ser juízes e que, com vasto altruísmo, transportam a separação de poderes
para a política.
Temos governantes casadas com
juristas tão indispensáveis que vendem ao governo pareceres (e parece-me bem).
Temos governantes tão francos
e modernos que protestam no Twitter a remoção das esposas do governo que eles
aceitaram integrar.
Temos governantes com espírito
fraternal, que pagam as oliveiras de amigos ao preço das próprias árvores
bíblicas.
Temos governantes que souberam
gerir, com escassas fraudes de permeio, a épica e adiada reconstrução de
Pedrógão e arredores.
Temos governantes que, durante
os incêndios de 2017, garantiram que os bombeiros não falassem e o povo não
fosse incomodado com informações deprimentes.
Temos governantes que, por
coincidência, possuem empresas no sector que passam a tutelar, e que, por
pudor, despacham as empresas quando são nomeados, e que, por respeito dos
valores da família, asseguram que a transação das empresas se faz com um
sobrinho.
Temos governantes que confiam
na economia a ponto de abrirem firmas de imobiliário no dia anterior à tomada
de posse.
Temos governantes que combatem
justamente os colégios privados e que, com grande sacrifício pessoal, mantêm as
filhas num colégio privado por pura necessidade.
Temos governantes que, com
rara visão, atribuem contratos de centenas de milhões a “startups” pequeninas
(50 mil euros de capital social), jovens (três dias de existência), humildes
(sediadas numa junta de freguesia) e empreendedoras (a junta de freguesia, à
imagem dos dirigentes, é do PS).
Estes são só alguns exemplos.
Estou certo de que todos os membros do executivo ostentam credenciais
fantásticas, e que o nosso desconhecimento das mesmas reflete a nossa radical
ignorância. Não é qualquer borra-botas que é selecionado para um governo
destes, e não é qualquer borra-botas que aceita a seleção. No caso, são borra-botas
muito peculiares.
Agora a sério (dentro do
possível): antigamente a sujidade da política sofria uma demão de verniz. Nas
situações extremas, varria-se o lixo para debaixo do proverbial tapete. Nos
tempos que correm, é isto. Nas redes do funcionalismo partidário ou nos
jantares lá de casa, o dr. Costa arregimenta umas resmas de fiéis sem nome nem
escrúpulos e pronto, está constituído um governo. Perante o imenso rol de
serviçais indistintos (no sentido de que nunca alguém distinguirá uns dos
outros), é engraçado ver o “comentariado” oficial, assaz solene, debater as
“apostas seguras”, as “apostas de risco” e as “apostas na continuidade”. Eu
aposto na miséria e na prepotência e na voracidade do costume, agravadas pela
crescente falta de vergonha.
E, claro, pela falta de um
presidente que imponha limites. À semelhança do tango, o fandango nacional
exige um par: o dr. Costa, que convoca criaturas abaixo de suspeitas, e o prof.
Marcelo, que as aceita sem hesitação ou ressalva. Fica a ideia de que o
duvidoso currículo de tantos governantes não é um obstáculo à respectiva
“indigitação”, mas um pormenor indiferente ou um critério indispensável. Nas
profundas declarações que comete, o prof. Marcelo orgulha-se repetidamente de
dormir pouco: se fosse responsável por legitimar tamanha trupe, eu não dormiria
nada.
Felizmente, os portugueses
dormem. A sucessão de escândalos em matéria de compadrio, inaptidão, atropelos,
descaramento e pura fraude que definiram o governo anterior castigaram o PS com
a vitória nas urnas e o reforço da votação. Não vou discutir pela enésima vez
se os portugueses preferem habilidosos deste calibre porque são iguais a eles,
porque sonham ser iguais a eles ou porque não veem alternativa. A verdade é que
os portugueses optaram por um governo assim porque quiseram, e esses 18% de
eleitores deviam ser forçados a assistir em direto e de pé ao lindo serviço que
fizeram: simbolicamente, a tomada de posse é hoje. Na prática, o PS já tomou
conta disto há anos.
Título e Texto: Alberto
Gonçalves, Observador,
26-10-2019
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